sexta-feira, 10 de maio de 2013

Sob o Signo da Cabra Negra - Quando Shub-Niggurath se manifesta na Terra


Shub-Niggurath representa a vida. 

Ela é o estímulo que conduz a criação e a origem de tudo. Mas a "Cabra Negra com mil filhos" não é meramente a vida, ela é a fúria decorrente do existir, a necessidade de propagar, o desejo de fertilizar, de reproduzir, de fecundar custe o que custar...

Os cultos antigos afirmavam que toda a conjunção carnal é realizada em seu nome, e que o ato sexual cumpre o designo da Magna Matter. Ela é a antítese de Azathoth, a entropia universal, mas forma com ele um delicado equilíbrio cósmico: ela é vida enquanto seu algoz é a morte. É a partir da deusa que a vida flui em todos os aspectos, formas e sentidos. 

Mas engana-se aquele que assume ser essa entidade uma força aliada da humanidade. A Cabra Negra é acima de tudo um princípio de  mutação que não tolera a estagnação e opera mudanças em tudo a sua volta. Quando Shub-Niggurath é invocada para a Terra, ela se manifesta em toda a sua gloriosa majestade blasfema. 

Sua forma é gigantesca, uma massa colossal, que ascende aos céus, tal qual um grotesco pilar de carne pulsante fervilhando sem parar. Na superfície de seu corpo marrom-esverdeado e brilhante, desenrola-se uma abundância de filamentos semelhantes a tentáculos que se agitam sem parar. Na massa, podem ser vistos orifícios vaginais, genitálias e imensas bocas cheias de dentes e línguas que mordem e chupam, estalando ruidosamente. Uma saliva caudalosa mistura-se a bile negra, escorrendo e gotejando dessas cavidades, que abrindo, fechando ou se agitando, expelem e ejaculam uma torrente de substâncias viscosas. 

Grandes bolhas de matéria orgânica se formam espontaneamente, como enormes tumores do tamanho de balões de gás enquanto estruturas como gânglios crescem até explodir. Partes de seu corpo possuem diferentes texturas e padrões, como se ela fosse formada de uma colcha de retalhos de tecido e músculos costurados uns sobre os outros. Há olhos em toda parte, purulentos e amarelados, lacrimejando. Nenhum deles se mantém por muito tempo, já que toda a sua superfície borbulha e se reconstrói após no máximo alguns segundos.  

Na extremidade inferior, em meio a milhares de testículos, nascem dezenas de patas musculosas e descarnadas que terminam em cascos fendidos que concedem sustentação a sua titânica corpulência. Ao se mover, o chão treme diante de suas várias toneladas. Apesar de ser capaz de locomoção, a deusa prefere simplesmente levitar no ar, a poucos metros do chão. As patas agitando-se sem qualquer padrão no ar, os tentáculos chicoteando e as bocas estalando. Há um som misto de gemidos e balidos em meio a cacofonia geral. O cheiro da coisa é incrivelmente pungente e ofensivo, podendo ser detectado a quilômetros.

Quando deseja abençoar seus cultistas, a deusa forma um massivo úbere na parte inferior da massa e faz aparecer um conjunto de imensas tetas. Estas se incham até começar a verter uma substância escura, que seus seguidores normalmente se referem como o leite de Shub-Niggurath. Aqueles que bebem dessa substância são afetados por alucinações e premonições, e muitas vezes acabam manifestando profundas mutações.  
    
Uma das características mais marcantes de Shub-Niggurath é gerar outras criaturas. Sua forma absurdamente inchada a ponto de arrebentar, evidencia o fato dela estar sempre prenha. Tomada de  espasmos, por vezes, um volume avantajado se contorce sob as camadas de carne  pustulenta e uma boca ou orifício se abre para parir ou vomitar uma massa menor protoplásmica que se arrasta viva, até ser absorvida uma vez mais.   

Shub-Niggurath é uma abominação sem precedentes. Poucos que vislumbram sua forma absurda retém a sua sanidade, menos ainda são aqueles que sobrevivem após se aproximar.

O próprio ambiente onde ela se manifesta é alterado e sua presença tem como efeito corromper a natureza de tal forma que ela perverte e transforma tudo a sua volta. Os antigos cultos que ousavam invocar sua presença física para a Terra chamam esse efeito de "Arrebatamento da Cabra".

Onde quer que a deusa se manifeste, uma onda de vida se espalha do marco zero e transborda tão rapidamente que nada é capaz de conter sua ação. A vegetação cresce selvagem, campos se abrem em flor, frutos incham e estouram, lançando no ar suco e sementes que crescem de imediato, árvores ficam carregadas de folhas e frutos até seus galhos se partirem como peso. Os animais perdem o controle e seus instintos. Insetos cantam enlouquecidos, pássaros voam para a direção errada e mergulham no solo, peixes desafiam a correnteza dos rios e finalmente, todos os animais se entregam a um cio incontrolável visando unicamente a reprodução.

Mesmo humanos, não são imunes a esse frenesi. Os antigos cultos diziam que "o sangue fervia nas veias daqueles sob a influência de Shub-Niggurath". Afetados por esse êxtase coletivo, indivíduos de ambos os sexos se entregam incontrolavelmente ao rompante do acasalamento em orgias selvagens e primevas. Talvez essa manifestação seja a base para a lenda das Ménades, as cultistas da Grécia clássica que serviam ao Deus Dionísio. As Bacantes, como eram chamadas, se entregavam a um rompante sexual tamanho, que eram "estraçalhadas" física e espiritualmente em um turbilhão de lascívia muitas vezes violento no qual se feriam e  flagelavam a própria carne.

Da mesma forma, os amantes prementes, influenciados por Shub-Niggurath agem ferozmente, e o termo "animalesco" pode ser usado para descrever suas ações. A disputa pelo direito de cópula se converte em uma luta alucinada como ocorre com muitas espécies na natureza. Machos se enfrentam violentamente e podem chegar a matar seus competidores pela atenção das fêmeas da espécie. Durante o frenesi não existe civilização, a razão dá ensejo a desorientação reprodutiva. Mesmo as fêmeas alucinadas, são capazes de despedaçar os corpos dos machos se não forem impregnadas imediatamente. 

Felizmente, após o episódio, a mente humana tende a apagar da memória tudo aquilo que ocorreu durante o arrebatamento de forma a proteger a sanidade de tal revelação. A exposição a descarga de energia fecunda, que acompanha a chegada de Shub-Niggurath, dura algumas horas, mas seus efeitos são muito mais longos. Após o arrebatamento a natureza é irremediavelmente conspurcada. 

A vegetação que cresceu descontrolada assume gradualmente uma coloração e aspecto doentios. Os arbustos e galhos parecem se mover sozinhos, a despeito do vento e fatores externos. Flores desabrocham em horríveis formatos e aparência dramaticamente alterada, seu perfume é azedo e almiscarado. As frutas continuam a crescer inchadas e belas, mas com um gosto tão adocicado e concentrado que torna inviável o consumo. As raízes rompem o chão e se espalham com o um tapete rugoso pelo solo remexido, exalando um cheiro onipresente de húmus. Seiva grossa verte como sangue escuro do alto dos troncos repletos de musgo e linquem. O mato está em toda parte, ervas daninhas recobrem a paisagem. As estações deixam de influir no curso da natureza. As flores crescem no inverno, enquanto no auge da primavera as folhas desbotam e caem.

Os animais também apresentam mudanças. Muitos pressentem algo estranho e evitam a área que fica quieta e deserta. As crias afetadas pelo pulso da deusa começam a mudar e crescem além da conta. Elas apresentam deformidades congênitas: insetos de coloração bizarra e constituídos por um exoesqueleto quitinoso brilhante. Animais nascem com membros extras ou atrofiados e as fêmeas possuem diversos úteros. Suas proles são fartas, com dezenas de filhotes a cada acasalamento. Muitas dessas formas de vida são tão alteradas que no fim das contas se destacam da espécie que lhes deu origem.

E uma vez mais humanos não são poupados dos efeitos. As crianças concebidas durante o arrebatamento de Shub-Niggurath possuem traços distintos. Dizem que estes nascem sob o signo da cabra negra já que foram  "abençoados" por ela. São crianças fortes e robustas, mas de alguma forma estranhas. Indivíduos sensíveis sentem-se afetados perto delas, mesmo que na maioria das vezes não saibam dizer por qual razão. Em alguns casos, essas crianças possuem características incomuns: olhos de cores distintas, cabelos lisos e brancos, chumaços de pelos pelo corpo, uma compleição de tonalidade azeviche... em alguns casos, a mutação é ainda mais acentuada e é inegável que algumas dessas crianças tem um aspecto caprino inquietante, algo que remete às lendas de faunos e sátiros.

Muitos falam que essas crianças se comportam de forma incomum e estes não estão errados em suas observações. As crianças nascem com uma percepção distinta do mundo. Nas palavras de cultistas "são capazes de ver além das aparências e enxergam aquilo que existe entre os recessos do mundo real e do imaginário". Para o observador casual, elas parecem sofrer de autismo, mas um profissional não estaria tão seguro desse diagnóstico. 

Para todos os efeitos essas crianças são diferentes e, é claro, preservadas pelo culto, predestinadas a se tornarem os líderes ou candidatas a importantes rituais.

Em Goatswood, por exemplo, onde o culto da cabra negra é muito forte, uma vez a cada cinco anos uma criança concebida durante o Arrebatamento da Cabra é sacrificada ritualisticamente. Após rasgar a garganta da vítima, sua própria mãe remove as vísceras e as lança sobre um altar de pedra para que a sacerdotisa possa realizar uma leitura precisa do futuro, consultando os haruspícios. Em Sköpk, um isolado vilarejo no interior da Sérvia, quando uma criança concebida na noite do arrebatamento se torna adulta, há uma grande festividade. No fim da celebração, ele é levado ao centro do vilarejo e forçado a impregnar uma mulher especialmente escolhida pelo culto. Segundo a tradição esta dará a luz a um Gof'nn Hupadgh - uma cria especial, que nasce com corpo de homem, cabeça e patas de bode. 

Finalmente, nas escuras florestas de Chilóe, no extremo sul da Patagônia chilena, a Brujeria, um secto de poderosos feiticeiros, é famoso por conduzir um sinistro ritual no qual uma cria do arrebatamento é amarrada e depositada no interior de uma árvore morta. Enquanto sofre uma morte lenta e agonizante, o espírito da vítima sacrificada passa para o tronco da árvore que se transforma em uma das abomináveis Crias Negras de Shub-Niggurath (os Dark Young).

Shub-Niggurath é uma das forças mais poderosas do cosmos e sua manifestação de forma alguma deve ser tratada de forma comum. As consequências de sua invocação são sérias e quase sempre dantescas.

Achou interessante? Leia também:

Os Deuses Externos

A Mãe Negra e seu culto

Os Semeadores de Shub-Niggurath

Goatswood - Vilarejo de Shub-Niggurath

The Black Goat - Curta metragem inspirado na Cabra Negra

16 comentários:

  1. Fico tentando imaginar como seria tal evento...Mesmo com as descrições minha mente ainda não consegue conceber tal loucura!Isso que e o mais fantástico em Lovecraft!O verdadeiro horror se faz na sua própria cabeça,tentando imaginar tais aberrações.Excelente texto!Gostaria de ver mais artigos como esse futuramente!

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  2. Putz, texto muito foda! Parabéns.

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  3. Cara, será que daria pra escrever um artigo sobre Hastur, porque não acho em lugar nenhum. Se não puder, poderia me indicar algum site que tenha?

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  4. Sugestões de entidades e criaturas anotadas.

    Hastur e Yog-Sothoth estão nos planos.

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  5. Excelente texto! Sempre bom parar por aqui e dar uma lida!

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  6. Luciano futuramente poderia falar sobre o Delta Green?
    Estou quase terminado de ler o Delta Green Rulebook e estou achando fantástico.

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  7. Uma das melhores descrições da Deusa que já pude ler! Muito bom!

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  8. Excelente matéria!!!
    Parabéns ao autor!!!
    Este é um blog que merece sua audiência!!!

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  9. Mas que ligação estranha é essa que a deusa tem com os bodes/cabras?

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    1. N sei vc mas assim que ouvi que as crianças nasciam com aparência de bode me lembrei de Wilbur wathaley. Eu juro que pensava que ele era filho de yog sottoth

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    2. Talvez as cabras sejam símbolo de fecundidade? Sei lá... Mas lembro que cabras são conhecidas por consumirem tudo. Talvez seja essa a metáfora: uma fecundidade tão absurda, tão blasfema que destrua e consuma tudo.

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