quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Conto Tentacular: O Dilacerador dos Véus por Ransey Campbell


O conto à seguir, escrito por Ransey Campbell foi publicado originalmente em 1964, como parte da antologia "O Habitante do Lago e outras estórias" uma coleção de estórias originais sobre o Mythos de Cthulhu. Foi nessa coleção que Campbell apresentou o Vale de Severn, uma região isolada da Grã-Bretanha - espécie de equivalente de Arkham, na Nova Inglaterra - que atrai uma assustadora concentração de entidades, criaturas e cultos dedicados ao Mythos.

Camside, a cidade onde se passa essa estória em especia, é um dos lugares onde habita Eihort, o senhor do labirinto, outro dos Grandes Antigos criados por Campbell.

Daoloth, o obscuro Deus Exterior que é a entidade central nesse conto faz a sua primeira aparição nessa estória, que cita ainda elementos clássicos como o pérfido Necronomicon, Yuggoth e Tond e é claro menciona os volumes do Revelações de Glaaki, tomo criado por Ransey Campbell e que se tornou recorrentes em suas estórias como uma contribuição para o universo do Mythos.

O Dilacerador de Véus é uma estória curta (apresentada aqui em duas partes) a respeito dos perigos de se aventurar pelo mundo proibido do oculto. É um conto cuja moral pode ser: "cuidado com aquilo que você deseja conhecer, pois esse conhecimento pode lhe sobrepujar". Algo sincronizado com um dos temas prediletos de H.P. Lovecraft, o "conhecimento proibido" que não deve ser apreciado pela mente humana - nesse caso, que não deve sequer ser vislumbrado por olhos humanos.

Sem mais, aqui está...   

*     *     *

O DILACERADOR DOS VÉUS
(The Render of Veils) 



por Ramsey Campbell
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.

Blog Domínio Publicano (cedido gentilmente)

À meia noite, o último ônibus para Brichester já havia partido, e estava chovendo pesadamente. Kevin Gillson considerou amargamente ficar sob a marquise do cinema próximo até o raiar da manhã, mas o vento forte impelia a chuva de tal forma que a marquise não fornecia abrigo algum. Ele virou a gola de seu casaco para cima, tão logo a água começou a descer por seu pescoço, e lentamente subiu pela colina, distanciando-se do ponto de ônibus.

As ruas estavam virtualmente desertas; uns poucos carros que passavam não reagiam aos sinais que ele fazia. Muito poucas das casas pelas quais ele passava sequer chegavam a ter luzes acesas; causava-lhe depressão andar pelo asfalto úmido e negro, que refletia imagens trêmulas das luzes dos postes. Encontrou apenas uma pessoa na rua – uma figura silenciosa, curvada à sombra de umbrais. Apenas o brilho avermelhado de um cigarro convencera Gillson de que havia de fato alguém ali.

Na esquina das ruas Gaunt e Ferrey, notou um veículo aproximando-se. Um tanto atordoado pelos reflexos dos faróis, percebeu que era um táxi, passando pelas ruas em busca do último passageiro da noite. Kevin acenou com o esfrangalhado Camside Observerque estava carregando, e o táxi estacionou ao seu lado.

"Ainda está pegando passageiros?” gritou pela divisória.

"Eu estava indo pra casa,” respondeu o motorista. "Mas – se você ainda vai andar muito – eu não o deixaria andando pelas ruas numa noite como esta. Para onde vai?”

Gillson pediu que fossem para Brichester, e fez menção de entrar. Porém, naquele momento, ouviu uma voz próxima chamando; e ao voltar-se viu uma figura correndo pela chuva, em direção ao táxi. Pelo cigarro entre seus dedos e pela direção de onde havia vindo, Gillson imaginou que tratava-se do homem que havia notado nos umbrais.

"Espere – por favor, espere!" gritava o homem. Batia os pés no chão até chegar no táxi, molhando Gillson no processo. "Se importaria se compartilhássemos seu táxi? Se estiver com pressa, deixa pra lá – mas se eu for desviá-lo do caminho, pago a diferença. Não sei como é que eu poderia ir pra casa se não pegando táxi, embora eu não more muito longe daqui."

"E onde você mora, mesmo?" perguntou Gillson, cauteloso. "Não estou com pressa, mas..."

"Na Rota Tudor," respondeu rapidamente o homem.

"Ah, esse lugar é a caminho de Brichester, não?" disse Gillson, aliviado. "Claro, pode entrar – vamos acabar pegando pneumonia se ficarmos em pé aqui por mais tempo."

Uma vez no táxi, Gillson deu orientações ao motorista e sentou-se na parte de trás. Não sentia vontade de conversar, tendo decidido ler um livro, esperando que o outro não puxasse conversa. Pegou a cópia do Bruxaria nos Dias de Hoje que havia comprado numa banca, e ficou folheando as páginas.

Estava começando um capítulo quando uma voz o interrompeu. "Você acredita nessas coisas?"

"Nisto aqui?" Gillson inquiriu de maneira resignada, batendo na capa do livro. "De certa forma, sim – suponho que essas pessoas acreditavam que dançar nus e cuspir em crucifixos os faria bem. Um tanto infantil, porém – eram todos psicopatas, claro."

"Digno de um livro sensacionalista como esse, eu diria," concordou o outro.

Houve um silêncio de uns poucos minutos, e Gillson considerou voltar ao livro. Abriu-o novamente e leu a extravagante sinopse de orelha, e então o pôs de lado de jeito irritado, quando um fio de água desceu de sua manga para a página aberta. Limpou a mancha, e então sentiu-se irritado demais para ler o livro.

"Mas você sabe o que estava por trás desses cultos de bruxas?"

"O que quer dizer?" perguntou Gillson, deixando o livro de lado.

"Você conhece os verdadeiros cultos?" continuou a voz. "Não os servos medievais de Satã – mas aqueles que veneram deuses existentes?"

"Depende do que você quer dizer com 'deuses existentes'," respondeu Gillson.

O homem pareceu não ter notado esse comentário. "Eles formavam esses cultos porque estavam buscando alguma coisa. Talvez você tenha lido alguns de seus livros – você não os encontrará nas bancas, como aconteceu com esse aí, mas estão preservados em certos museus."

"Bem, uma vez estive em Londres, e dei uma olhada no que eles tinham no Museu Britânico."

"O Necronomicon, suponho." O homem parecia quase divertido. "E o que achou dele?"

"Achei um tanto perturbador," confessou Gillson, "mas não tão horripilante quando haviam me levado a esperar. Porém, não pude compreender tudo que havia ali."

"Pessoalmente, eu penso que ele é ridículo," disse o outro, "tão vago... Mas, é claro, se o livro tivesse descrito aquilo do qual dá pistas, nenhum museu teria contato com ele. Suponho que seja melhor que apenas uns poucos saibam da verdade... Desculpe-me, você deve estar me achando esquisito. E olha só, você nem me conhece. Sou Henry Fisher, e suponho que possa descrever-me como um ocultista."

"Não, por favor, continue," disse Gillson, "O que você está contando me interessa."

"Bem, interessado em pessoas buscando coisas? Por que razão, estaria você procurando alguma coisa?”

"Não exatamente, embora eu tenha um tipo de convicção persistente, desde que era criança. Nada incômodo, na verdade – só uma espécie de ideia de que nada é realmente como enxergamos: se houvesse outra forma de enxergar as coisas sem usar seus olhos, tudo pareceria bem diferente. Esquisito, não é?”

Quando não veio resposta, ele se virou. Havia uma expressão estranha nos olhos de Henry Fisher; um olhar de triunfo surpreso. Notando o desconcertamento de Gillson, pareceu controlar-se e comentou:

"É fantástico que você tenha dito isto. Já tive essa ideia por muito tempo, e muitas vezes estive a ponto de encontrar uma maneira de prová-la. Sabe, há uma maneira de enxergar o mundo sem utilizar os olhos, mesmo que você esteja na verdade com eles abertos – mas não só isto pode ser perigoso, como requer duas pessoas. Poderia ser interessante nós dois tentarmos... ah, mas é aqui que eu desço.”

Haviam estacionado diante de um flat. Por trás das árvores que gotejavam, um caminho de concreto corria até onde janelas pintadas de amarelo e preto amontoavam-se umas sobre as outras. "O meu é no térreo,” comentou Fisher ao sair e pagar o motorista.

Gillson abaixou a janela. "Espere só um minuto,” disse. "Você estava falando sério – o que foi que disse sobre ver as coisas como elas realmente são?”

"Está interessado?” Fisher abaixou-se e olhou para dentro do táxi. "Lembre-se que eu falei que poderia ser perigoso.”

"Não me importo,” respondeu Gillson, abrindo a porta e saindo. Fez sinal para que o motorista fosse embora, e somente quando estavam já observando as luzes traseiras diminuírem com a distância é que ele lembrou que havia deixado seu livro no assento.

Embora as árvores ainda estivessem gotejando, a chuva havia parado. Os dois homens andaram pelo caminho de concreto, e o vento turbilhonou por volta deles, parecendo soprar das estrelas geladas. Kevin Gillson sentiu alívio quando fecharam as portas de vidro por trás dele e entraram em um hall decorado com papel de parede florido. As escadas levavam para outros flats, mas Fisher virou-se para uma porta à esquerda, de azulejos de vidro.

Gillson na verdade não esperava nada específico, mas o que viu além daquela porta de azulejos de vidro o fascinou. Era uma sala de estar normal, com mobília contemporânea, papel de parede moderno, uma lareira elétrica; mas alguns dos objetos não eram de forma alguma normais. Reproduções de pinturas de Bosch, Clark Ashton Smith e Dali estabeleciam a atmosfera anormal, que era aumentada pelos livros esotéricos ocupando uma estante em um canto. Mas estes, pelo menos, poderiam ser encontrados em outros lugares; algumas das coisas ali, ele jamais havia visto antes. Não conseguia definir o objeto em formato de ovo que estava na mesa no centro do aposento, emitindo um estranho e intermitente assobio. Nem reconheceu os contornos de algo que estava num pedestal num canto, coberto por uma lona.

"Talvez eu devesse tê-lo avisado,” interrompeu Fisher. "Acho que não é exatamente o que você esperaria a partir da fachada do prédio. De qualquer forma, sente aí, e vou pegar um pouco de café enquanto explico alguns detalhes. E vamos ligar o gravador – quero que ele esteja funcionando mais tarde, de modo que eu possa registrar nosso experimento.”

Foi até a cozinha, e Gillson ouviu o bater de panelas. Por sobre o barulho, Fisher falava:

"Eu fui um garoto bem peculiar, sabe – bastante sensível, mas dotado de um estranho sangue frio. Depois de ter visto um gárgula uma vez na igreja, tive sonhos nos quais ele me perseguia, mas uma vez quando um cachorro foi atropelado diante de nossa casa, os vizinhos todos comentaram o quão avidamente eu observava a cena. Meus pais uma vez chamaram um médico, e ele disse que eu era 'muito mórbido, e que deveria ser mantido longe de qualquer coisa que pudesse me afetar.” Como se eles pudessem!

"Bem, foi na escola de gramática que eu tive essa ideia – na verdade foi na aula de física. Estávamos estudando a estrutura do olho, certo dia, e eu comecei a pensar no caso. Quanto mais olhava para o diagrama das retinas e humores e lentes, mais ficava convencido de que o que enxergamos através desse sistema complicado deve estar distorcido, de alguma forma. É muito simplista dizer que o que se forma na retina é apenas uma imagem, não mais distorcida do que as que enxergamos num telescópio. Eu quase me levantei e disse ao professor o que pensava, mas sabia que se o fizesse, eles ririam de mim.

"Não pensei mais no caso até chegar na Universidade. Então comecei a conversar com um dos alunos, um dia – seu nome era Taylor – e antes que eu percebesse, havia me unido a um culto de bruxos. Não aqueles decadentes pelados do seu livro, mas aqueles que realmente sabem como canalizar o poder de elementais. Eu poderia dizer bastante sobre o que realizamos juntos, mas algumas das coisas levariam tempo demais para serem explicadas. Hoje eu quero tentar o experimento, mas talvez depois eu conte a você sobre as coisas que eu sei. Coisas como a parte do cérebro que não é utilizada e como ela pode de fato ser posta em uso, e sobre o que está enterrado num cemitério não muito longe daqui...

"De qualquer forma, depois de algum tempo após minha iniciação, o culto foi exposto, e todos foram expulsos. Tive sorte, já que não estava na reunião que foi delatada, então permaneci na Universidade. Melhor ainda, alguns deles haviam decidido abandonar totalmente a feitiçaria; e eu persuadi um deles a me doar todos os seus livros. Entre eles estava o Revelações de Glaaki, e foi nele que li sobre o processo que quero tentar esta noite. Li sobre isto.”

Fischer entrou na sala de estar, carregando uma bandeja onde estavam duas canecas e um bule de café. Cruzou então a sala até onde estava o objeto velado num pedestal, e enquanto Gillson se aproximava, puxou a lona.

(cont...)

2 comentários:

  1. Será que o Ransey Campbell só vai ser lançado no Brasil quando entrar em domínio público ? Lamentável, sempre quis ler mais coisa do autor. O jeito vai ser encarar em inglês mesmo....

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