quarta-feira, 1 de outubro de 2014

The Knick - Série mostra como era o dia a dia em um Hospital na virada do século XIX.


Vou ser sincero. Eu nunca gostei de séries médicas, porque tenho aflição daquelas cenas longas e assustadoras em que uma doença é debatida e depois tratada sem economia de sangue.

Comecei a mudar um pouco essa opinião depois de assistir todas as temporadas de House, uma série onde a doença era tratada como um enigma a ser descoberto e vencido. Espelhado em Sherlock Holmes, o médico genial nem queria olhar o paciente, apenas revelar a face oculta da doença. Mesmo assim, alguns episódios não nos poupavam de sangue, vísceras, olhos estourando e órgãos supurando. Nesses casos eu virava o rosto.

Mas não tem como olhar para o outro lado quando se trata de "The Knick" a nova e elogiada série do Canal Cinemax. Em The Knick, se você "ficar com medinho do sangue", corre o risco de perder um episódio inteiro, porque as imagens da sala de cirurgia não poupam ninguém.

Vou dar uma ideia do que acontece no primeiro episódio, e que sirva de aviso para os que assim como eu tem restrições quanto a banhos de sangue e órgãos extirpados.

Na Nova York de 1900, na virada do século, um sujeito acorda em um antro sórdido de ópio em Chinatown. Em meio ao seus devaneios ele é avisado que está atrasado e sai às pressas tropeçando nas próprias pernas, carregando um par de sapatos brancos imaculados para pegar um táxi (na verdade, um coche) que o leve até o Hospital Knickbocker. A gente pensa em um primeiro momento que se trata de um paciente, que talvez tenha consumido algum opiáceo envenenado, mas não... o sujeito é o conceituado Dr. John Thackery (Clive Owen) à caminho de mais uma jornada de trabalho no hospital apelidado como "The Knick".


Mas ainda não acabou, logo ficamos sabendo que Thackery é considerado um gênio, um desses médicos com Síndrome de Deus, caráter duvidoso e uma inclinação preocupante para se auto-destruir. O primeiro trabalho do dia envolve um complicado procedimento cirúrgico, o parto de uma mulher que está com placenta descolada. Diante de uma platéia de médicos dispostos em três fileiras de camarote, a maca é trazida com a assustada mulher grávida que implora que seu filho seja salvo. Tudo é incrivelmente teatral e coordenado. Sem grande perda de tempo, a cesariana improvisada se inicia.

O procedimento, explica o chefe da cirurgia, envolverá cortar a barriga da mulher, sugar o sangue rapidamente com bombas manuais, extrair o feto e suturar o mais rápido possível para assim evitar perder a paciente. Não é a primeira vez que eles tentam o procedimento, todos os anteriores acabaram em óbito. Quando a cena se inicia vemos um ambiente branco imaculado, os médicos esterilizados e tudo parece remeter a uma operação controlada. Mas não... nos primeiros dois minutos fica claro que os médicos não tem a mais remota ideia do que está acontecendo ou de como proceder, o sangue espirra para todo o canto, pedaços da mulher são extirpados com bisturis, as bombas sugadoras vão sifonando sangue sem parar, deixando a pobre coitada pálida. De repente, um movimento rápido de câmera, e vemos o feto sendo arrancado de dentro da mulher e colocado nos braços de uma enfermeira que corre para tentar reanimá-lo. A pressão vai caindo, o silêncio toma conta da sala de cirurgia, coberta de fluidos gotejantes. A mãe morre, a criança nem chega a respirar. 

A cirurgia falhou, mais um dia como qualquer outro no Knick. Os médicos lavam as mãos como Pilatos e com a consciência de que fizeram o humanamente possível analisam como será a próxima cirurgia.

Não se preocupem, nada disso, é spoiler. Haverão muitas outras cenas igualmente chocantes de cirurgias ao longo do primeiro episódio e é claro, ao longo de toda a série. 

Mas "The Knick" vai muito além das cenas grotescas de cirurgias, realizadas com uma crueza de detalhes perturbadores. A série se concentra numa época em que a medicina moderna estava apenas se formando, quando métodos eram testados e quando experimentos rudimentares serviam como base para procedimentos que usamos até hoje. Mas como fica claro na série, foi um longo e tortuoso caminho até se estabelecer os métodos mais seguros para salvar os pacientes, e no processo muitos, muitos mesmo perderam as suas vidas.


Em um momento da série, o brilhante Dr. Thackery comenta que em cinco anos, a ciência médica avançou mais do que nos 500 anos anteriores. O início do século XX, viu um desenvolvimento inacreditável, mas ainda assim, para os padrões atuais, uma cirurgia desse período se assemelha a um abate de gado. O mais curioso é que, no ritmo das inovações e descobertas, daqui a 100 anos, as pessoas provavelmente olharão com o mesmo horror para os métodos que usamos hoje em dia. Felizmente a ciência está em constante progresso.

O médico interpretado por Clive Owen, que à princípio parece ter um ranço de Dr. House, consegue ser o fiel da balança nesse período. Ele é um mal necessário para uma classe que ainda engatinha, que desconhece a penicilina, que utiliza o extrato de cocaína loucamente e que prefere ignorar as noções de ética e moral mais básicas. O Dr. Thackery não acha que é Deus, ele se sente o próprio. Em sua sala de cirurgia ele tem em suas mãos os instrumentos necessários para desafiar a própria criação divina e confrontar o Criador determinando por conta própria "quando" seu paciente tem autorização para morrer.

Esse é fácil o melhor papel da carreira de Clive Owen que de uns tempos para cá, vinha rateando nas suas escolhas profissionais, mas acabou achando um espaço onde seu talento pode finalmente brilhar com a intensidade adequada. O seu Dr. Thackery para outros atores talvez soasse forçado e desnecessariamente maldoso, mas nas mãos de um ator competente, o médico, com seu bigodinho de malandro é a imagem do cinismo personificado. Nós não sabemos até que ponto o Doutor se importa com seus pacientes ou se tudo que ele faz é uma maneira de ganhar em excitação, um barato que nem as drogas que ele aplica em suas veias (e no canal uretral, sim você leu isso!), conseguem produzir.


Além é claro dos dramas do médico brilhante e desafiador, a série contempla vários outros aspectos do funcionamento de um hospital no início do século. Como retrato de época, "The Knick" é tão complexo e oferece tantas facetas quanto sua concorrente no gênero drama de época "Downton Abbey". Se na série britânica, o foco são os dramas e transformações da sociedade inglesa, aqui a coisa se volta para a luta de classes e pela própria sobrevivência num período no qual a América ainda tentava se firmar.

"The Knick" conta com um vasto elenco de apoio, com os membros da equipe e o pessoal que orbita a instituição hospitalar.

Temos o administrador Barrow (Jeremy Bobb), um burocrata corrupto que tem que se desdobrar para obter verba para a instalação de luz elétrica e para saldar dívidas com criminosos e Cornelia Robinson (Juliet Rylance), a filha de um milionário que é alçada ao posto de diretora do hospital, cargo para o qual, uma mulher jamais seria cogitada. É claro, temos também a inevitável personagem da Enfermeira Elkins (Eve Hewson) que quer ajudar os doentes, mas precisa conquistar o respeito dos médicos e a experiência para lidar com os limites da profissão. Ela é o contraponto para a Irmã Herriet (Cara Seymour), uma freira que se entregou ao cinismo e desalento, que oferece abortos para as desesperadas pacientes que batem sua porta na calada da noite.


Dentre a fauna variada que transita pelo Knickebocker meu favorito, é Tom Cleary (Chris Sullivan), o motorista irlandês briguento e beberrão que comanda a ambulância emergencial. É curioso saber como as coisas nessa época funcionavam. Quando uma pessoa chamava a ambulância ou precisava de socorro, os vários hospitais da cidade disputavam na base da ignorância quem fica com o paciente. E não estou exagerando, o socorrista Cleary se arma para disputar o paciente ainda no chão, todo quebrado. Isso porque a demanda por pacientes - ou melhor espécimes, era enorme e os socorristas ganhavam por vítima deixada na porta do hospital. Numa das cenas mais surreais, um socorrista, se prepara para brigar com os punhos pelo direito de recolher uma vítima de atropelamento, quando Cleary desce da carroça com um taco de baseball e ameaça: "Ou eu levo esse sujeito para meu hospital, ou levo vocês dois. É sua escolha!"

Outra figura curiosa do elenco de apoio é o Inspetor de Saúde Speight (David Fierro) incumbido de fiscalizar os cortiços apinhados de imigrantes no caldeirão multi-cultural que era Nova York. Com poder de polícia garantido pelo governo, faro para detectar doentes e uma cobiça transcendental, ele enche os bolsos escolhendo para onde enviar os moribundos. Em uma cena de doer na alma, uma menininha imigrante explica à mãe que não fala uma palavra de inglês que ela tem uma doença fatal e que, o máximo que se pode fazer, é providenciar uma morte sem tanta dor usando drogas. A mulher, absolutamente ciente de seu quadro crítico, apenas lembra à criança de que ela não pode perder o horário na fábrica onde trabalha. Realismo total de uma época aterrorizante!

"The Knick" corta fundo em vários temas. 

Além do dia a dia tresloucado do Hospital sobra espaço para mergulhar nos problemas da época: racismo, machismo, ética, corrupção... tudo que condenamos hoje em dia, grassa pelos corredores como um pequeno microcosmos absurdo e horripilante.

No primeiro episódio, a chegada de um médico formado no exterior, o Dr. Algernon Edwards (André Holland) reconhecidamente brilhante e capaz, acaba repercutindo na equipe. O médico, afinal de contas, é negro e sua incorporação a equipe se torna um desafio nos tempos em que "igualdade" era uma palavra ausente do dicionário. A maneira como ele é tratado pelos seus colegas, pela equipe e até pelos pacientes que ele pretende ajudar, causa indignação.


A produção da série, sob a responsabilidade do diretor ganhador do Oscar, Steven Sodembergh (de Traffic) é sensacional. A reconstituição de época, que transformou uma cidadezinha no Canadá (onde ocorrem as gravações) numa versão perfeita da Nova York do início do século é irretocável. Das ruas cheias de pessoas, os distritos abarrotados de imigrantes, famílias morando em cortiços, às propagandas em cada parede, a cidade ganha vida como um ente vibrante e pulsante. Para quem gosta de história, "The Knick" oferece um retrato detalhado de uma sociedade em transformação. É interessante assistir para conhecer o dia a dia das pessoas que construíram a maior metrópole do mundo e ter uma ideia de como a vida era dura naquele tempo. 

Embalado em um roteiro afiado e um elenco equilibrado, The Knick tem tudo para conquistar seu espaço e se tornar uma sensação na temporada. Descrito como um "Plantão Médico" nos tempos de "Gangues de Nova York" a série já teve a sua segunda temporada confirmada com mais episódios e um orçamento ainda maior.  

Mas não adianta falar sobre os vários méritos da série. É inegável que a grande atração de The Knick acabam sendo os procedimentos cirúrgicos da época. O requinte da produção é tamanho que os atores que fazem o papel de médicos tiveram aulas de anatomia e com médicos para compreender o funcionamento do corpo humano, o que  torna sua interpretação muito mais convincente. Além de se comportarem como médicos do início do século XX, os personagens manipulam ferramentas e instrumentos reais, usados por profissionais do período. Boa parte dos instrumentos vieram de coleções particulares ou de museus de hospitais. Os atores tiveram de se familiarizar com eles e saber como usá-los. Além disso, testaram seus conhecimentos recém adquiridos diante de seus professores. Só quando todos eram capazes de convencer os médicos do que estavam fazendo, eles puderam iniciar as filmagens. Os astros também tiveram de se acostumar com o sangue e vísceras onde praticamente mergulham a cada episódio. Alguns membros da produção comenta-se, chegaram a passar mal durante as filmagens e acabaram afastados por não tolerar a rotina de baldes de sangue e órgãos prostéticos.


Como o mote da série é o hiper-realismo, aqueles suscetíveis a imagens podem se preparar. Entre closes indecorosos e sequências longas e claustrofóbicas, vemos estômagos sendo destrinchados, tripas sendo puxadas e pedaços sanguinolentos serem cortados a todo momento. Não há beleza na "divina máquina humana projetada por Deus".

O choque inicial das cenas sanguinolentas, no entanto, compensa, à medida que você mergulha nos meandros da Estória fictícia e nos detalhes da História real. Uma combinação imbatível para uma série que consegue ser informativa e erudita, sem em momento algum perder em empolgação e drama.

Trailer legendado:

3 comentários:

  1. Estava assistindo a série que é espetacular e a NET sem aviso nenhum a retirou do NOW, faltava assistir os capítulos finais, portanto, peço que a serie retorne ao menu do NOW. João Paulo

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