sábado, 6 de fevereiro de 2016

5000 Palavras - Carta assinada por H. P. Lovecraft descoberta em arquivo


James Machin é um estudante com PhD em Birkbeck, na Universidade de London, trabalhando em uma tese a respeito dos pioneiros do gênero ficção fantástica (weird fiction), em meados de 1880 até 1914. Ele também é o editor do jornal Faunus, dedicado a Arthur Machen. Suas pesquisas no Ransom Center foram patrocinadas por um Fundo da Universidade do Texas.

Ele escreve aqui a respeito de uma sensacional descoberta envolvendo H.P. Lovecraft:

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Uma das alegrias do trabalho como pesquisador de arquivos é seguir seus próprios instintos e satisfazer a curiosidade pesquisando o que bem entender. O tema central de minha tese são os pioneiros da Fantasia Fantástica, e embora a maior parte do meu tempo nas bibliotecas seja utilizado para investigar material relacionado a autores da década de 1890 como Arthur Machen, M. P. Shiel, e John Buchan, eu não consegui resistir a procurar material de H. P. Lovecraft no velho catálogo da biblioteca no Ranson Center. Curiosamente, em minha busca, encontrei um único item listado no cartão de referência: uma carta de Lovecraft endereçada a J. C. Henneberger. 

O nome era bastante familiar: Henneberger era o editor que fundou a revista Weird Tales em 1920, um dos principais títulos no gênero pulp que é lembrado atualmente por ter publicado vários trabalhos importantes, não apenas de H. P. Lovecraft mas de outros escritores muito populares nos dias atuais. 


A carta tinha várias páginas, escritas com uma máquina de escrever modesta e enviada em um papel de carta com a epígrafe constando o endereço do remetente: 598 Angell Street, Providence, Rhode Island. Para quem não sabe, esse era o endereço da casa para onde Lovecraft se mudou com a família em 1904 após a morte de seu avô Whiple Phillips. A data da correspondência, é 2 de fevereiro de 1924. Um ano significativo na vida de Lovecraft, já que ele estava prestes a deixar seu lar de quase duas décadas para se casar com sua noiva Sonia Haft Greene e se mudar para o Brooklyn, Nova York. Lovecraft lutou para encontrar trabalho, o casamento descambou e muitos apontam esse período como sendo o início de seus muitos problemas pessoais e frustrações profissionais.

Pouco depois de escrever essa carta, Henneberger ofereceu a Lovecraft um trabalho como editor na sede da Weird Tales em Chicago. Se Lovecraft tivesse agarrado essa oportunidade com unhas e dentes, a história de sua vida e de sua carreira poderia ter sido muito diferente. Ele poderia ter se estabelecido como autor, como o homem de letras que nasceu para ser, evitando assim a humilhação (ao menos na sua concepção) de ser "apenas" um escritor de ficção barata. Com certeza, esse trabalho teria ajudado a afastar a pobreza e a obscuridade na qual ele viveu seus últimos anos de vida.

O estudioso e biógrafo S. T. Joshi, especialista na carreira de Lovecraft, identificou algumas razões pelas quais ele tomou sua decisão. Na época Sonia Greene já estava estabelecida em Nova York, com um trabalho que lhe rendia um bom retorno financeiro, além disso, ela era uma designer de chapéus com algum sucesso já conquistado e sua carreira tinha a perspectiva de deslanchar. Sem dúvida, Sonia ganhava mais dinheiro que Lovecraft e aparentemente, o casal tinha um pensamento bastante progressista quanto a garantir o sustento da família, dando preferência para aquele que tinha um trabalho mais rentável.

Além disso, Lovecraft devia saber que a Weird Tales se encontrava nessa época em dificuldades financeiras com um débito na casa dos milhares de dólares. Ele tinha sérias dúvidas quanto a manutenção da revista e se ela conseguiria se equilibrar por muito tempo. Mas talvez o mais importante tenha sido o fato de Lovecraft achar que não haviam suficientes autores do gênero, ao menos não de qualidade, capazes de escrever regularmente para a revista. 

A carta encontrada menciona exatamente essa preocupação de Lovecraft e vai além, ao falar da sua preocupação com o interesse do grande público em ficção de qualidade. Lovecraft deixa claro seu ponto de vista ao descrever seu desgosto com "toda a atmosfera e temperamento do negócio de ficção na América". Para Lovecraft, o problema era a cultura contemporânea:


"Nós temos milhões de pessoas simplesmente destituídas de independência intelectual, coragem, e flexibilidade para atingir o nível artístico necessário para criar estórias com colorido e vivacidade de emoções. Ao invés disso, temos argumentos simples e artificiais de sobra, valores adocicados sem mistérios profundos, sendo apreciados pela frívola compreensão de leitores medíocres. Esse é o tipo do público que os editores tem que confrontar, e apenas um tolo ou um autor fracassado poderia culpar os editores pelas atuais condições, causadas não por eles, mas por toda essência da história tradicional de nossa civilização" .

A frustração de Lovecraft com a timidez com que os autores de sua época tratavam os leitores, não poderia ser expressa em termos mais diretos do que o trecho acima. 

Em outro ponto de sua carta (que tem mais de 5,000 palavras), Lovecraft menciona dois projetos para novelas Azathoth e The House of the Worm, nenhuma das quais se materializou. Ele reflete longamente a respeito dos elementos presentes em uma boa estória de ficção fantástica, e é generoso e entusiasta nas recomendações de autores que considera como boas aquisições para a Weird Tales. Ele também enuncia o que considera como sendo o melhor curso de ação para a Weird Tales obter sucesso: contratar jovens ghost-writers e aceitar trabalhos de iniciantes, não para serem publicados, mas para identificar aqueles com originalidade. 

É difícil não especular o que teria acontecido se Lovecraft tivesse aceitado o serviço em Chicago. Essa ideia de lidar com jovens autores e encontrar novos talentos inevitavelmente levaria a aumentar as fileiras do seu famoso "Círculo Lovecraftiano" (autores imersos nos Mythos de Cthulhu que se apropriavam de elementos por ele criados e que em contrapartida ajudavam a expandir a mitologia). Lovecraft com sua rara capacidade de reconhecer autores tão bons quanto ele próprio, poderia ter ajudado a impulsionar a carreira de outros talentos de sua época como aconteceu com Clark Ashton Smith, Robert E. Howard, e Robert Bloch.

Infelizmente, nunca saberemos...

Mas no final das contas, as coisas não foram tão ruins quanto Lovecraft previu: a despeito de seus problemas financeiros e a precariedade de seu primeiro ano, a Weird Tales sobreviveu e conseguiu se estabelecer. Quem pode dizer se com Lovecarft à frente da editora, mantendo seu ponto de vista purista e não-comercial o mesmo aconteceria? Talvez sua política terminasse por afundar a revista de uma vez por todas.

Talvez aqueles entre nós, que admiramos a literatura pulp do início do século XX e sua influência cultural duradoura, tenhamos de simplesmente ser gratos a Henneberger por ter criado a Weird Tales, por ter reconhecido o trabalho de Lovecraft (Henneberger se esforçava para que seu editor Edwin Baird aceitasse os trabalhos enviados por Lovercaft), e por ter fornecido uma plataforma para escritores de um gênero até então tido como sub-literatura. Se não fosse pelo entusiasmo e esforço de Henneberger, provavelmente muitas estórias de Lovecraft jamais tivessem visto a luz do dia, permanecendo esquecidas no fundo de uma gaveta.


A questão a respeito da proveniência da carta e como ela foi parar no arquivo do Centro Ransom continuam me surpreendendo. Ela era apenas um item esquecido na coleção. Rick Watson que trabalha no arquivo gentilmente investigou mais um pouco sobre sua origem e contou que a carta provavelmente era parte da coleção de Albert Davis ou Messmore Kendall, originalmente adquiridas pela Universidade do Texas entre 1956 e 1958. Quando eu fiquei sabendo que a coleção de Messmore Kendall (1872–195), um advogado e empresário teatral, incluía material pertencente a Harry Houdini, o mistério aparentemente se resolveu por conta própria. Na mesma época em que Lovecraft escreveu essa carta, Henneberger o havia contratado para ser ghost-writer de uma estória concebida por Houdini chamada "Imprisoned With the Pharoahs" (Aprisionado com os Faraós) publicada no ano seguinte pela Weird Tales. Parece ser uma suposição razoável que Henneberger tenha entregue a carta a Houdini pouco depois de recebê-la para demonstrar a capacidade de Lovecraft como escritor e sua perspicácia a respeito do futuro da ficção fantástica.

Graças ao Ranson Center, nós ainda podemos desfrutar de seu discernimento quase um século depois.

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