segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Mesa Tentacular - "The Dance in the Blood" no encontro do Saia da Masmorra


E aí pessoal,

Semana passada, tivemos o tradicional encontro do Saia da Masmorra na Livraria Cultura no Centro do Rio de Janeiro. Além do lugar fantástico e da organização fora de série, rolou um encontro amigável com direito a mesas de RPG e jogos variados, com destaque para uma mesa de Terra Devastada narrada pelo próprio autor, nosso parceiro John Bogea (de quem finalmente peguei autógrafo no meu Abismo Infinito).

O encontro foi muito animado, uma reunião de jogadores e mestres, com dados rolando, bate papo e troca de ideias.

Na ocasião, tive a oportunidade de narrar um cenário purista de Rastro de Cthulhu, ambientação que não custa lembrar, se encontra novamente em Financiamento Coletivo no Catarse através da Editora Retropunk.

O cenário escolhido foi "The Dance in the Blood" um dos mais elogiados escritos por Graham Walmsley, responsável por uma série de aventuras puristas em que o horror dos Mitos de Cthulhu se mistura com uma aura absolutamente pessimista que parece transbordar para a mesa de jogo. 

Essas aventuras podem ser encontradas individualmente ou reunidas no livro "The Final Revelation", composto dos seguintes capítulos: The Dying of St Margaret (lançado pela Retropunk), The Watchers in the Sky, The Rending Box e é claro The Dance in the Blood.


Sério mesmo, não estou exagerando... esse cara escreve as aventuras mais niilistas que eu já li. A medida que o cenário vai progredindo e as pistas vão levando a resolução do quebra cabeças, existe uma única certeza, o final não vai ser nem um pouco feliz.

Não se trata de spoiler (considerem como um aviso) o estilo purista de Walmsley contempla sempre o PIOR dos PIORES. Nada é ruim o bastante que não possa piorar e em geral a aventura termina de maneira abrupta, com um verdadeiro soco na boca do estômago e com a sanidade descendo a ladeira.

"The Dance in the Blood" (A Dança no Sangue) não é diferente.

A aventura que se passa no interior da Grã-Bretanha no ano de 1935, coloca um grupo de investigadores inexperientes em um mesmo lugar que eles próprios não sabem porque estão visitando. Nenhum deles se conhece, mas há um senso de estranha familiaridade entre eles. Com base em revelações perturbadoras, eles começam a compreender o que os trouxe ao isolado Lake District ,uma região pantanosa no Norte da Inglaterra, e qual a sina que parece uni-los.

Aos poucos o grupo descobre que seu passado é uma mentira, que existem segredos que jamais foram revelados e que seu passado esconde coisas que vão repercutir para o resto de suas vidas, se é que eles sobreviverão a sucessão desenfreada de horríveis revelações. 

É difícil falar de "Dance" sem entregar os detalhes e as reviravoltas. 

Trata-se de uma aventura difícil que eu sempre tive receio de narrar. Ela precisa de um certo timming e os jogadores realmente PRECISAM comprar a ideia de que seus personagens estão afundando em um pesadelo do qual não tem como despertar. E quando o Keeper praticamente já puxou o tapete de baixo dos pés deles, é que vem o momento em que eles afundam de vez. Como eu disse, nesses cenários, nada é ruim o bastante que não possa piorar.

Eu realmente gostei de narrar essa estória. Originalmente ela é escrita num estilo sandbox - coisa que, via de regra, me dá arrepios! Mas consegui estabelecer uma espécie de "plot point" com o qual eu podia me guiar e fazer com que ela corresse da maneira que eu desejava. No meu entender isso não limitou a narrativa ou as opções dos jogadores, eles tomavam os caminhos perfeitamente lógicos e no final das contas usei bem poucos rolamentos e regras de jogo - confesso que estava meio temeroso de não lembrar de todas as regras, pois fazia um tempo que não "seguia o Rastro", mas correu muito bem.

Foi uma aventura bem legal e fiquei satisfeito com o resultado dela.

Abaixo, vocês podem conferir algumas fotos do evento e dos Handouts que produzi para a sessão.

O grupo e a mesa de jogadores ao lado de "yours truly".



Jogadores segurando seus personagens e defendendo os investigadores com unhas e dentes, literalmente até as raias da loucura.

É o que se espera de uma aventura com bons jogadores, e essa teve uma excelente cumplicidade. O pessoal estava afiado!


E essa é aquela foto "tradicional" que simula o "placar da rodada".

Dois mortos no sentido correto da palavra, mas creio que mesmo os que - aham - sobreviveram, entendem que seus personagens passaram por algo diferente. Não sei se houve "vencedores", mas enfim... nem tudo em ambientações Lovecraftianas ou no Mundo dos Mythos de Cthulhu é simples.

Via de regra, é o contrário.😇

(sim, estou usando essa ferramenta de emoji que é novidade no blog!)

Para rolar essa aventura produzi alguns Handouts e props simples para a imersão na partida:


Essas cartas foram concebidas após ver a ideia do Bruno Prosaico. O objetivo delas é definir o grau de dificuldade do rolamento, lembrando que em jogos puristas o número que precisa ser obtido (entre 2 e 8) fica em segredo.

As cartas servem para revelar o grau de dificuldade após o rolamento do dado. Eu achei que era bobagem, muito preciosismo, mas usando na prática, confirmei que é um recurso bem interessante.


Essas são as fichas dos personagens. Uma vez que é uma aventura concebida para ser um one shot eu preferi construir os personagens e entregá-los aos jogadores.

Para quem está perguntando "que ficha é essa"? 

Trata-se de uma ficha criada pelo mesmo talentoso Bruno Prosaiko que fez um trabalho gráfico simplesmente magnífico. A ficha, que faz parte do Financiamento Coletivo como uma das metas adicionais, é excelente. 

Possivelmente a melhor versão de Ficha de Jogador de Rastro de Cthulhu.


Eu adoro o fato da ficha ser ao mesmo tempo funcional e bonita. Sem falar que ela é dobrável parecendo um folder. Uma vez que as regras de Rastro são bem simplificadas, ela basta e sobra para as necessidades da sessão.


Os props foram bem simples. Encontrei imagens e escrevi alguns textos. O cenário trazia poucos Handouts, bem produzidos, mas nem todos eles atraentes. Preferi então fazer alguns novos.

Como sempre, eu fiz minhas mudanças em alguns pontos da história. 

Inseri algumas coisas que não estavam lá originalmente e removi alguns outros elementos que minha intuição disse não funcionariam direito.


Consegui encontrar também um mapa da Grã-Bretanha que mostrava o lugar onde se passa a aventura.


Mas de todos os handouts, esse aqui foi sem dúvida o meu favorito.

A imagem da Família reunida eu tirei do próprio livro, imprimi com qualidade fotográfica e coloquei em uma moldura antiga. Ficou um prop muito legal e nem foi tão complicado de produzir. 

O mais bacana dessa foto foi perceber que ela ia de um lado para o outro da mesa, com os jogadores observando e buscando nela pistas que pudessem ajudar a resolver o mistério.


Ok, mais um prop que não me deu trabalho e que eu sempre quis usar em uma mesa de jogo.

"The Dance in the Blood" permitiu a chance perfeita para utilizar essa miniatura do jogo de tabuleiro "Mansions of Madness", mas para isso tive que fazer algumas mudanças no roteiro e inserir a menção a monstros diferentes.

Bom, foi isso...

Uma tarde de loucura, morte e caos (E claro, diversão!).





sábado, 26 de novembro de 2016

Cargo Cult - Quando os "Deuses" presenteiam os mortais


Com base no artigo de Brian Dunning

Era um dia lindo no quarto planeta do Sistema 892 quando Kirk, Spock, e McCoy se materializaram.

McCoy observou os arredores e expressou seu pensamento para os demais: "Apenas uma vez eu gostaria de chegar a um lugar e dizer: "Contemplem, eu sou o Arcanjo Gabriel."

Era uma ótima piada, chegar em um planeta atrasado e pouco desenvolvido tecnologicamente e se apresentar como um emissário de Deus (ou dos Deuses).

Em outro episódio, os mesmos personagens discutiam a respeito de seu encontro com uma entidade com poderes divinos quase ilimitados: 
"Para os simples pastores e aldeões da Grécia antiga, criaturas como essa seriam compreendidos como deuses... Especialmente se eles tivessem o poder de alterar sua forma à vontade e comandar grande energia".
Curiosamente, esses dois momentos extraordinários da série Jornada nas Estrelas clássica, poderiam ser facilmente transportados para o mundo real. De fato, incidentes similares, envolvendo supostos "deuses" tiveram lugar nas Ilhas Tropicais do Pacífico Sul.

O que acontece quando membros de uma civilização mais avançada encontram nativos que vivem em estado tribal primitivo? O que acontece quando esse primeiro contato é estabelecido? De que maneira, as pessoas mais primitivas encaram a modernidade dos outros?

Um "avião" feito de sisal é louvado por nativos em um ritual religioso em honra aos deuses do céu.

Em alguns casos, o que acontece é um curioso fenômeno religioso estudado por antropólogos, chamado "Cargo Cult".

Se você já ouviu falar a respeito de "Cargo Cults" antes - e é bem provável que não tenha - a versão que você conhece, provavelmente é semelhante a seguinte narrativa. Durante a Segunda Guerra Mundial, no Teatro do Pacífico, tropas aliadas se espalharam pelas ilhas, trazendo com eles comida, remédios, veículos, aviões, eletricidade, refrigeração e todo tipo de maravilha da era moderna que as populações nativas desconheciam. Então, quando a Guerra se encerrou e as tropas foram embora, elas deixaram para trás muitos dos objetos trazidos. Os nativos, em uma clara demonstração da terceira lei de Arthur C. Clarke que estabelece "Qualquer tecnologia suficientemente avançada para um determinado povo é indistinguível de magia", concluíram que tudo aquilo só poderia ter vindo de um lugar: dos Deuses. 

Eles temiam que um dia estas divindades quisessem aquelas coisas de volta. Então, fizeram aquilo que parecia lógico pela sua perspectiva da Idade da Pedra: eles começaram a recriar as condições sob as quais os deuses e seus objetos maravilhosos teriam surgido. Eles começaram a limpar as estradas na selva. Prepararam campos onde antes existiam pistas de pouso e decolagem. Começaram a usar restos de uniformes militares com distinção. Fizeram "rifles" de bambu e marcharam como os soldados (ou seriam arautos dos deuses?) faziam. E continuaram observando. Os olhos voltados para os céus, aguardando o retorno dos Deuses, ou ao menos que eles estivessem satisfeitos com seus preparativos. Que talvez Eles viessem logo ou quem sabe os presenteassem com mais artefatos.

Com regalias religiosas, na verdade um uniforme militar, um sacerdote da melanesia comanda um ritual com um megafone (outro objeto sagrado)

Um dos mais estudados e conhecidos casos de Cargo Cult ocorreu em 1930, quando uma tribo primitiva que vivia próximo das Ilhas Hébridas Orientais encontrou seu salvador na figura improvável de um certo John Frum. De acordo com muitas testemunhas, o próprio Frum era um nativo chamado Manehivi que havia cruzado o caminho de marujos ocidentais, aprendido sua língua e adotado muitos dos seus costumes.

Ele teria passado muitos anos viajando em navios mercantes até finalmente retornar para seu local de nascimento, numa isolada ilha no Pacífico Sul. Ao reencontrar seus compatriotas, Frum trouxe consigo uma série de objetos que os missionários haviam entregue aos seus cuidados: comida enlatada, remédios, ferramentas, facas e roupas. Frum (ou melhor, Manehivi) contou aos habitantes da Ilha que havia sido levado em uma longa viagem por Terras Distantes habitada por toda sorte de Deuses e seus mensageiros, um lugar de onde ele havia retornado com presentes magníficos. Imediatamente ele se tornou um tipo de celebridade, o ilustre "homem que viveu entre os Deuses". Para usufruir de sua companhia, o Chefe da Tribo deveria fazer dele seu herdeiro e oficializar seu casamento com as filhas que ele escolhesse desposar.

Em 1940, quando missionários visitaram a ilha novamente, encontraram Frum na posição proeminente de Chefe. Mais do que isso, ele havia se convertido em uma espécie de Deus Vivo para os nativos. Estes, entretanto, ficaram chocados quando os missionários o trataram de modo desrespeitoso e falaram com ele com ar de superioridade. Frum se apressou em ordenar a expulsão dos visitantes, mas os nativos estavam confusos. Por fim, aceitaram as palavras do "Líder" como verdadeiras e se livraram dos missionários. Mas o desaparecimento dos religiosos acabou atraindo autoridades coloniais que visitaram a Ilha. Lá descobriram o que havia acontecido e deram voz de prisão a Frum. Os nativos se mostraram confusos novamente, mas dessa vez eles não conseguiram "se livrar dos forasteiros" com a mesma facilidade. Frum acabou sendo preso e levado à ferros para ser julgado.

Os óculos de aviadores em uma versão dos nativos que tentam imitar a vestimenta e os trajes dos emissários dos deuses.

Antes de partir, ele afirmou que um dia voltaria, mas jamais retornou! Anos mais tarde, algo extraordinário aconteceu.

A Segunda Guerra Mundial chegou ao Pacífico Sul. As Novas Hébridas foram inundadas com estrangeiros. Comida, remédios, Coca-Cola e dinheiro choveu sobre os nativos. Muitos ilhéus foram recrutados como trabalhadores, recebendo pagamento por seu serviço. Estes se tornaram "ricos" e importantes. A promessa de John Frum parecia ter se cumprido: os Deuses haviam retornado.        

Uma das coisas que os militares descobriram era que a lembrança de John Frum ainda existia na Ilha. Mais do que isso, ela era bem mais do que uma mera superstição, ele fazia parte da religião local. Para conseguir plena contribuição dos nativos, a Marinha americana usou a lembrança de Frum, dizendo que eles eram amigos do "Deus" e que ele havia lhes enviado. Aos olhos dos nativos, a Profecia havia se concretizado, os Deuses estavam de volta. 

Infelizmente, quando a Guerra acabou, também terminaram os presentes e favores dos Deuses e os ilhéus foram deixados mais uma vez sozinhos na ilha. Aguardando o retorno daquelas entidades fantásticas que lhes traziam presentes.

Cargo Cults aparecem em várias outras narrativas, algumas delas, muito anteriores a Segunda Guerra.

Um dos primeiros casos conhecidos ocorreu na Costa de Madang na Ilha de Papua Nova Guiné, quando o pioneiro antropólogo russo Nicholas Miklouho-Maclay visitou o lugar em meados de 1870, trazendo consigo tecidos e ferramentas de metal. Os presentes do visitante foram interpretados como presentes divinos e mesmo depois de sua partida, os nativos continuaram lembrando do encontro como um legítimo contato com uma Divindade.

Guerreiros marcham com rifles de bambu no ombro. As danças tribais influenciadas pelo comportamento dos "Emissários dos Deuses". No peito, o estranho símbolo tonado sagrado, as misteriosas letras USA.

Cem anos mais tarde, um grupo de nativos na Ilha de Nova Hanover, acreditava que o Presidente Norte-Americano Lyndon Johnson - o líder dos visitantes que chegaram ao seu lar, tinha poderes divinos. Eles acreditaram que se fizessem dele seu Rei, receberiam em troca muitos presentes. Eles se rebelaram contra autoridades australianas que governavam a ilha e afirmaram estar formando um novo governo. Apontaram o Presidente Johnson como seu novo líder e ficaram aguardando sua visita, ocasião em que traria muitos presentes. Johnson é claro, jamais aceitou a dúbia honra e nem nunca visitou Nova Hanover. Os visitantes americanos resolveram a questão dizendo que seu líder, o Presidente Johnson, havia instruído os nativos a obedecer aos australianos.

A mistura de Cristianismo e superstições tribais por vezes causava problemas curiosos. Durante a Segunda Guerra, um grupo de militares australianos ficou preocupado em cometer sacrilégio ao permitir que um grupo de nativos considerassem que eles eram deuses. Um nativo da Nova Guiné, chamado Yali, que havia feito amizade com os missionários foi empregado com o objetivo de viajar pelas ilhas e afastar a mitologia do Cargo Cult. Por vezes não era uma tarefa fácil, sobretudo quando ele tinha de explicar que as armas e veículos usados por aqueles visitantes, não eram mágicos, mas objetos criados por homens mortais como eles.

Em pelo menos uma ocasião, Yali quase foi linchado quando tentou explicar aos nativos que os mágicos objetos voadores que sobrevoavam a ilha não eram pássaros gigantes que carregavam em seu interior mensageiros divinos. Os nativos não aceitaram aquela noção e não gostaram quando Yali os informou que as caixas de madeira que por vezes caíam do céu - trazendo mantimentos e objetos, não eram um presente para eles.

Embora Cargo Cults possam parecer, à primeira vista, como ignorância e superstição da Idade da Pedra, eles não são inteiramente irracionais. Eles são certamente ingênuos e baseados em falácias, mas para dar aos nativos algum crédito, eles estão fazendo o seu melhor para lidar com o que receberam e não compreendem. Esse sistema de certa maneira substituiu a necessidade de trabalho árduo para atingir objetivos, pela crença de que a fé irá prover o que quer que seja.

Um avião de carga lança caixotes do Céu, aos olhos de nativos, os Presentes dos Deuses.

Por essa razão, uma das diretrizes principais para todos missionários é jamais se aproveitar de sua condição e instar nos nativos a ideia de que são mensageiros divinos ou algo além de homens cumprindo uma missão. A primeira diretriz de Jornada nas Estrelas, citada lá em cima reflete exatamente esse comprometimento. Ao invés de perverter ou tentar substituir o sistema de crenças existente através de presentes, os nativos recebem a chance de adotar aquilo que desejam sabendo que não há magia a não ser aquela na qual eles querem acreditar.

Enquanto isso, olhe para o céu e espere ansioso pelo próximo presente dos Deuses.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Não abra os olhos - Resenha do Livro "Caixa de Pássaros" de Josh Malerman


Feche seus olhos (não vale espiar!).

Agora experimente ouvir o mundo à sua volta, de preferência de madrugada. Ouça com atenção e vários ruídos irão parecer estranhos e incomuns. Espere mais um pouco... preste atenção nos tons, nas nuances, em cada detalhe. Agora faça uma outra experiência, tente andar pela casa apenas ouvindo as coisas à sua volta. Com os olhos vendados, tentando se guiar apenas pelos sons. Que barulho foi esse? Que ruído foi aquele?

Estar cego, virtualmente incapaz de perceber o ambiente. Não ter coragem de abrir os olhos porque o mundo como conhecemos não existe mais e dependendo do que enxergar, você pode enlouquecer de vez e se tornar uma ameaça à todos à sua volta.

Bem vindo a Caixa de Pássaros.

A premissa do primeiro romance de Josh Malerman, lançado aqui no Brasil pela Editora Intrínseca, é que o mundo acabou por conta de uma espécie de epidemia violenta e incontrolável. Ninguém sabe ao certo o que é, como se transmite ou mesmo do que se trata. Essa epidemia, no entanto, causou sérios danos a civilização como um todo e obrigou os sobreviventes a se esconderem em suas casas e não olhar para fora. Abra seus olhos e você pode ficar louco. Matará seus entes queridos e depois vai acabar matando a si mesmo em um frenesi assassino. Quanto tempo é possível evitar espiar o que está acontecendo? Até quando é possível suportar a privação do principal sentido?

Nesse romance pós-apocalíptico não temos informações suficientes para compreender o que aconteceu? Seria uma doença neurológica? Um tipo de histeria em massa? Uma invasão alienígena? Ninguém sabe ao certo, mas há muitas conjecturas. Como nos filmes de zumbis, a catástrofe despencou sob a cabeça das pessoas comuns e a derrocada da humanidade foi muito, muito rápida. A única coisa que está clara é que sair de olhos abertos para o exterior resulta em insanidade, não apenas confusão ou atordoamento, mas violência destrutiva do tipo homicida.  

A estória se passa em um futuro bem próximo, algum tempo depois da desgraça se abater sobre o mundo. Malorie é uma jovem mãe, que cuida de suas duas crianças da melhor maneira possível. Ela está treinando as crianças há mais de quatro anos, a ouvir e reconhecer o mundo através da audição e não da visão. As crianças desenvolveram uma notável sensibilidade e são a sua esperança em uma arriscada missão. Ela planeja embarcar em uma jornada às cegas através de um rio tentando encontrar ajuda. Qualquer som pode ser alguém ou alguma coisa a persegui-la. Ela precisa confiar nas habilidades do menino e da menina para guiá-la por um território misterioso e insondável. E os leitores a acompanham em sua viagem sem saber para onde ela está indo e o que ela espera encontrar.


Os capítulos do livro alternam diferentes épocas da vida de Mallory: sua jornada através do rio, como ela enfrentou o início da crise e como ela foi parar na casa refúgio que se tornou o seu lar. Nós ficamos sabendo como o "problema" começou, acompanhamos o horror e destruição que se instala em um bairro suburbano de Chicago, o início da paranoia, a morte de parentes e amigos e a busca desvairada por um lugar seguro onde ela, grávida, possa ter o filho que carrega. Mallory finalmente encontra um santuário, uma casa onde os habitantes tiveram a oportunidade de se preparar para a crise, lá ela encontra um grupo de indivíduos desajustados, afundados no medo e na superstição. Lá ela também ficará sabendo de teorias conspiratórias sobre a natureza da crise, fará amigos e conhecerá ameaças.

Em estórias de horror, temos dois tipos de personagens. Aqueles com quem não nos importamos e que rapidamente se tornam vítimas das circunstâncias ou dos horrores que espreitam nas páginas. E aqueles para os quais torcemos e esperamos que sobrevivam até a última página. Em Caixa de Pássaros, temos o segundo tipo de personagem personificado em Mallory. Com os saltos na cronologia temporal, acompanhamos como se dá a transformação dela, de uma moça frágil e insegura, em uma lutadora, disposta a tudo para sobreviver e superar as imensas adversidades impostas a ela e suas crianças. A forma como a personagem vai se preparando para sua perigosa viagem, a maneira que ela trata as crianças e os horrores que enfrenta no caminho e nos anos anteriores a partida, são cobertos ao longo da trama.

Malerman conta a história de uma maneira sempre interessante, fazendo com que o leitor vire as páginas em uma agonia crescente.   

A dinâmica de uma casa cheia de refugiados também é um dos pontos altos da trama. Os personagens coadjuvantes que habitam a casa transformada em um microcosmo, estão sempre discutindo, sempre no limite de suas forças físicas e mentais. À um passo da insanidade. Além disso, tem o clima de constante paranoia e medo. Alguns acreditam que a causa da tragédia são monstros; criaturas vindas de outro mundo, realidade ou dimensão (ninguém sabe) que são tão bizarros que apenas olhar para eles resulta em loucura. Os sobreviventes precisam aprender a trabalhar em grupo, usar seus recursos com parcimônia, realizar tarefas em nome da coletividade e, é claro, superar a desconfiança inerente. Nem todos querem colocar em risco a precária segurança do refúgio e as maiores discussões envolvem as expedições para buscar alimento, remédios e material. A narrativa se mantém fixa no olhar de Mallory diante dos acontecimentos, de modo que o leitor só sabe aquilo que ela sabe.

Malerman consegue trabalhar muito bem o conceito familiar de uma sociedade pós-apocalíptica. Não é uma ideia nova, e francamente eu não esperava que ele conseguisse ser original quanto a isso. Mas realmente, ele consegue! Já vimos livros a respeito de civilizações devastadas por doenças misteriosas, por invasões alienígenas e por pragas de zumbis, mas em Caixa de Pássaros, ninguém tem a mais remota ideia do que está enfrentando e isso é terrivelmente assustador. Talvez não haja mais nenhuma ameaça ou perigo do lado de fora, mas é claro, ninguém quer se arriscar. Quem será o primeiro a remover as cortinas das janelas e abrir a porta, convidando o horror a entrar?


Lá pela metade do livro você nem quer mais saber quem ou o que é responsável pelo horror, tudo que quer é que Mallory consiga chegar com suas crianças a um lugar seguro. É claro, a jornada envolve perigos humanos, animais selvagens e a natureza inclemente. Há ainda um inequívoco odor de Horror Cósmico pairando no ar, algo bem próximo do pavor primitivo presente na obra de H.P. Lovecraft. A própria Mallory não sabe ao certo o que está sentindo ou se há alguma coisa inumana perseguindo sua canoa, mas a mera possibilidade a deixa aterrorizada.

"Caixa de Pássaros" é um excelente entretenimento e uma novela difícil de largar. Se você for ler no ônibus ou trem, é possível que perca o ponto ou a estação onde planejava descer. Caso esteja lendo na cama, prepare-se para dormir tarde, pois vai querer ler "apenas mais um capítulo" e quando se der conta, já serão duas da manhã. Caixa de Pássaros é estruturado de uma maneira que você se sente compelido a virar as páginas e saber de uma vez por todas como termina, ao mesmo tempo em que provoca aquela sensação de querer adiar ao máximo o parágrafo final afim de estender o mistério.

Não se trata de um livro de horror sobrenatural, mas um horror íntimo e psicológico que toca cada pessoa de maneira diferente. Alguns talvez se vejam menos suscetíveis ao horror oculto, mas outros vão adorar a sensação de se sentir acossados pelo desconhecido. O fato da personagem que conduz a trama tatear pelos capítulos finais literalmente às cegas, incapaz de traduzir o que está acontecendo é enervante. É um daqueles livros que recorre a imaginação do leitor para que ele mesmo crie em sua mente a perspectiva mais assustadora. E acredite, se você se deixar levar pela história, irá construir o pior cenário possível.  

Eu realmente gostei de Caixa de Pássaros e recomendo a todos os fãs de suspense que por vezes gostam de sentir uma saudável dose de claustrofobia.

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Seguindo o Rastro - Resenha do Livro de Recursos e Escudo do Guardião para Rastro de Cthulhu


Rastro de Cthulhu (RdC) tem se mostrado um produto de altíssima qualidade desde sua concepção. 

Com texto do genial Kenneth Hite e regras (o sistema Gunshoe) do brilhante Robin D. Laws, Rastro se tornou uma alternativa para aqueles que amam os Mitos de Cthulhu e que preferem uma abordagem diferente do clássico Chamado de Cthulhu.

Lançado no Brasil através de um Financiamento Coletivo pela Editora Retropunk em 2010, a boa notícia é que Rastro está de volta. A Retropunk está realizando um novo Financiamento com propostas bastante interessantes que envolvem inclusive trocar livros mais simples por versões mais caprichadas por uma bagatela e a doação desses mesmos livros para bibliotecas. Um projeto bem legal que agrada tanto os que já tem o livro quanto os que querem adquirir.

Outra novidade nesse Financiamento é a chance de adquirir o tão aguardado Livro de Recursos que acompanha o belíssimo Escudo do Guardião.

Essa resenha é a respeito desse material que, como o nome evidencia é um pacote de dois produtos em um mesmo pacote. Mas o que exatamente é esse material? Ele é útil? É importante para o jogo? Facilita a vida do Mestre (Guardião)? O que ele acompanha?

Bem, se você tem dúvidas, esse artigo visa responder. Vamos lá?

Tipicamente escudos do Mestre (também chamados de divisórias)  são caros para produzir pois utilizam papel grosso de alta qualidade. De um lado temos uma arte que remete a ambientação e do outro tabelas, regras de rodapé e outros detalhes que ficam ao alcance dos olhos do narrador. Também é bastante comum, que os escudos venham acompanhados de algum material adicional. Geralmente uma aventura, fichas de personagens, posteres ou algo semelhante. Este produto, entretanto, traz uma novidade interessante, um material distribuído em 68 páginas que corresponde ao tal Livro de Recursos.

Mas o que vem dentro do Livro de Recursos?


O livro, escrito por Simon Carryer é dividido em quatro seções diferentes. A primeira oferece um valioso panorama dos anos 1930, a época nominal da maioria dos cenários de Rastro de cthulhu. Seguem informações sobre as Habilidades Investigativas e Gerais utilizadas pelos personagens no jogo. A segunda seção oferece informações similares, mas dessa vez a respeito das Ocupações dos personagens. A terceira - e talvez a mais útil, fornece um "estoque" de 50 personagens prontos, para serem usados como Coadjuvantes em seus cenários (NPCs). O quarto e último é um sumário de três páginas com um bem vindo resumo das Regras de Estabilidade e Sanidade usadas em Rastro de Cthulhu.

Que tal falar um pouco mais de cada seção?

Seção 1 - Habilidades

A primeira seção é bastante impressionante em sua função de expandir as habilidades de personagens e sua utilização. Ela trabalha a maioria das Habilidades Investigativas e Gerais fornecendo informações sobre como cada habilidade pode ter uma importância central no roteiro dos cenários de jogo. 
     
Por exemplo, a Habilidade Contabilidade (Accounting) fala a respeito de Lavagem de Dinheiro, Transferências Monetárias, Evasão de Divisas, Envio de Fundos para o Exterior e uma variedade de opções para serem aplicadas em um cenário dos anos 1930. Digamos que você quer escrever uma estória sobre um gângster operando durante a Lei Seca, ali você encontra detalhes sobre como eles burlavam o sistema e acumulavam dinheiro. Não são apenas regras, mas formas muito originais de trabalhar as habilidades e fazer com que elas sejam incorporadas ao Roleplay. Essas informações ajudam a tornar cada Habilidade Investigativa mais interessante e prática. As descrições são muito detalhadas e reformulam a utilidade das habilidades expandindo o leque de opções. 

Outro exemplo? Como aplicar a Habilidade Química em investigação empregando técnicas existentes no período como análise inorgânica, Cromatografia e Gravimetria. Como usar Coletar Evidência por meio de Análise de digitais, verificação de documentos, comparação de fibras, marcas, etc.

A seção fornece uma abordagem específica de cada Habilidade e permite ao Guardião aumentar o grau de verosimilhança de sua investigação. Mesmo Mestres novatos poderão se beneficiar com as propostas de uso inteligente das habilidades e como elas podem ser usadas para a obtenção de pistas essenciais para resolver as investigações. Cada Habilidade Investigativa possui uma entrada com Benefícios Especiais que o Mestre pode conceder ao Jogador na forma de "Pontos Extras" que podem ser utilizados em outras Habilidades. Por exemplo, um personagem que tenha "Contabilidade" pode receber pontos em "Intimidação" sobre uma organização criminosa se ele possuir um conhecimento de Livros Caixa e de Operações ilegais - como lavagem de dinheiro.

As Habilidades Investigativas também trazem uma entrada com "Exemplos de Pista". Estas ajudam o Mestre a criar Pistas e as informações que serão repassadas aos Personagens no curso da Investigação.    

As Habilidades Gerais possuem dados históricos relevantes (como por exemplo a Habiliadde Armas de Fogo que fornece informações sobre as Leis de Porte de Armas no Período).         
Seção 2: Ocupações

A Segunda Seção do Livro de Recursos trata das Ocupações. O Capítulo fala sobre o significado de cada ocupação e como ela estava inserida na sociedade nos anos 1930. Detalhes históricos são fornecidos para cada uma, aumentando a compreensão do jogador a respeito da ocupação que ele escolheu para seu personagem. Isso ajuda, não apenas  atronar o jogo mais divertido, mas acrescenta uma bela dose de realismo ao jogo. 

Por exemplo, se você quiser personificar uma Enfermeira dos anos 1930, encontrará detalhes sobre o que uma enfermeira estudava, como ela se qualificava para o serviço e em que áreas ela podia desempenhar seu trabalho. Se o Jogador quiser ser um Piloto ele saberá detalhes sobre as infames corridas aéreas do período, sobre vôos de passageiros e o início da aviação civil. Com uma ênfase nos pequenos detalhes, essas informações serão extremamente valiosas concedendo mais profundidade a ocupações que à primeira vista podem parecer sem graça.Eu particularmente sempre achei o Andarilho um tanto sem graça, mas as opções oferecidas para a ocupação expandem muito o role do personagem e o tornam especialmente desafiador.


Seção 3: NPC 

A terceira seção do Livro de Recursos oferece mais de 50 personagens coadjuvantes para serem sacados pelo Narrador a qualquer momento. Eu acho muito cômodo ter à mão personagens prontos para serem apresentados e introduzidos aos jogadores, personagens interessantes como o Enigmático Capitão Egípcio de uma traineira que faz o caminho entre Luxor e o Cairo. Que tal detalhar o Médico da cidadezinha interiorana? Ou o Médium Charlatão que usa truques de teatro para enganar seus clientes? Ou ainda um guarda costas praticamente indestrutível que trabalha no submundo de Nova Orleans. 

Cada NPC listado inclui dicas com o tipo de comportamento, aparência e histórico. Ele também vem acompanhado de "frases de efeito" e um pequeno bloco das estatísticas chave. Todos os Personagens Coadjuvantes possuem "Três Coisas", pequenas peculiaridades que os tornam únicos e os destacam dos extras normais. Boa parte deles também possui "Ganchos" para que eles sejam inseridos em aventuras e ideias de como os personagens podem ter conhecido o sujeito.

Alguns dos NPCs são dispensáveis, sendo apenas extras sem nome ou face em uma investigação. Outros, no entanto, são ótimos e podem ser usados como aliados, inimigos, companheiros e obstáculos para os personagens. Os ganchos permitem que os coadjuvantes sejam usados de diferentes maneiras de acordo com a necessidade da estória. Por exemplo, um determinado personagem pode ser usado como um aliado essencial para o grupo, um contratempo que vai mais atrapalhar do que ajudar ou como um adversário disposto a ganhar espaço cada vez maior em uma série de estórias. 

Um detalhe muito interessante é que vários dos NPCs conhecem uns aos outros. Eu achei esse detalhe uma sacada genial, já que isso ajuda a inserir os NPCs em uma campanha e reaproveitá-los em diferentes oportunidades, talvez até para diferentes grupos. Como a natureza e relações podem variar, talvez o mesmo coadjuvante que se mostrou um aliado para um determinado grupo, possa vir a se tornar um oponente para outro. O Narrador decide.

Eu gostei muito desse capítulo. Os personagens são divididos em sub-seções e categorias: temos cultistas, capangas, colegas, autoridades, parceiros, etc. Com certeza muitos deles poderão ser úteis em sua estória, fornecendo aquele colorido que apenas ótimos personagens coadjuvantes podem oferecer. A única falha, se é que podemos chamar de falha é não haver um desenho ou fotografia desses coadjuvantes. Tudo bem, não é difícil conseguir imagens para ilustrar os NPCs, mas com o grau de detalhismo oferecido, um recurso visual seria muito bem vindo.

Seção 4: Estabilidade e Sanidade

A quarta e última seção do Livro de Recursos é um Sumário de três páginas com as regras de Estabilidade e Sanidade extraídas do Livro Básico.  

Esse sumário e muito necessário para uma compreensão plena do sistema de Dano Mental do Jogo. Cada uma das modalidades é contemplada: Pontos máximos de Estabilidade, Valor atual da Estabilidade, Pontos máximos de Sanidade e Valor atual de Sanidade. Eu vou ser sincero, tive que ler as regras repetidas vezes para assimilar o funcionamento das regras de perda de sanidade e loucura em Rastro de Cthulhu. Estabelecera  diferença entre cada modalidade não é tão fácil, saber o que implica em cada perda é parte essencial das regras. Imagino que esse sumário possa ajudar a resolver o problema.

Algumas revisões foram feitas para facilitar a compreensão e tornar mais claro alguns mecanismos do crunch. Sem falar que ter essa mecânica descrita de forma mais sucinta ajudará aos Narradores iniciantes (e por que não, os veteranos). 

Escudo do Mestre



Mesmo que o Livro de recursos seja o filé desse pacote, o Escudo do Guardião é um tremendo complemento, sobretudo para aqueles que são fãs desse tipo de ferramenta para o Mestre. Confesso que gosto muito de escudos e que quando tenho de narrar alguma coisa sem o escudo me sinto meio "pelado". Depois de tanto tempo usando escudos nas minhas campanhas, parece que falta alguma coisa quando não tenho uma divisória para separar meu material dos olhos curiosos dos jogadores.

Mas entendo que muitos Mestres dizem: "Eu não preciso de Escudo para esconder meus rolamentos!". Olha, sinceramente o escudo na minha opinião é um "plus". Eu raramente utilizo as regras descritas do lado do mestre, mas acho que a presença do escudo contribui para o grupo entrar no clima do jogo que será mestrado. Além disso, o escudo não serve "apenas" para esconder os rolamentos, ele é uma peça interessante para manter uma aura de mistério... já perdi as contas de quantas vezes rolei atrás do escudo apenas para manter os jogadores pressionados.

Enfim, o uso de um escudo é, e sempre será totalmente opcional. Cada mestre tem seu estilo e não cabe a mim dizer como cada um deve conduzir sua narrativa e que peças deve ou não usar.

Dito isso, falemos do Escudo, já que ele faz parte do pacote.

O Escudo possui três painéis com arte de um lado e três páginas com gráficos, tabelas e sumário de regras do lado do mestre. 

O primeiro ponto é que o Escudo não tem a mesma resistência dos escudos com os quais nos habituamos nos últimos anos. Ele não possui aquele papel grosso que parece capaz de parar uma bala de pequeno calibre (ou pelo menos o arremesso de um D20). O papel do escudo é cartonado - o nome técnico dele é triplex 350 gramas, e até onde sei, será esse o modelo adotado pela Retropunk, pois é este o material lá fora. Portanto, nada de reclamar do material e sugerir que a Retropunk está oferecendo um material de qualidade inferior. A boa notícia é que uma das metas a ser batida do Financiamento prevê um upgrade no material do Escudo fazendo com que ele se torne mais rígido, dentro do padrão adotado atualmente na maioria dos jogos. Eu espero que bata a meta estabelecida e que o escudo seja melhorado, não que ele seja frágil em sua encarnação original, mas sei que muita gente vai reclamar.



Quanto ao escudo em si, ele serve para sanar um problema de organização do Livro Básico. Algumas das regras estão muito espalhadas e nem sempre é fácil encontrar aquela maldita regrinha de rodapé, escondida num maldito canto do maldito livro. Por exemplo, algumas regras a respeito de armas estão espalhadas pelo livro e não há um sumário com as regras mais importantes no final do Livro. O Escudo ajuda a resolver parte do problema, oferecendo gráficos e tabelas importantes que vão facilitar a vida do Narrador que detesta interromper sua descrição para procurar uma regra perdida. Uma breve olhada no escudo ajuda a localizar as informações com mais agilidade e presteza.

Além disso, por vezes, eu esqueço alguns detalhes das regras (eu posso estar ficando velho, sabe como é), e ter uma tabela com detalhes sobre a mecânica de combate, iniciativa e estabilidade vem bem a calhar. Rastro é um jogo que possui algumas regras minuciosas e contar com uma "cola" dessas é sempre bom.

Quanto ao visual, eu não poderia ficar mais satisfeito, tanto que vou escrever em letras maiúsculas para demonstrar toda minha apreciação:

O ESCUDO É LINDO!

 A imagem é das mais evocativas, mostrando um grupo de investigadores observando um vale onde desponta uma estranha ruína com uma espécie de caverna (ou seria um olho Cthulhiano gigante?). Eu adoro essas ilustrações, a arte na minha opinião é um dos maiores trunfos de Rastro e muito disso se deve ao trabalho primoroso de Jérôme Huguenin, um artista que consegue como poucos invocar a aura sinistra, perturbadora e insana dos Mitos. O cara é muito fera! Só de ver essa imagem eu já imagino uma aventura pulp inteira e quase posso ouvir o som de tambores, sentir o cheiro da floresta e o incômodo do calor tropical.



O lado do Mestre é menos impressionante, mas conforme dito anteriormente é plenamente funcional. As tabelas são em preto, branco e cinza. Há um acabamento high gloss dos dois lados que faz o escudo brilhar e se destacar. Segundo a Pellgrane o escudo é à prova de café, o líquido teoricamente escorre sem deixar manchas. Eu não testei, mas se alguém quiser entornar café em seu escudo e me dizer se é verdade, ficaria feliz em saber.

O Livro de Recursos também é bem caprichado. A Pelgrane Press é conhecida pelo acabamento caprichado e a Retropunk se esforça para manter a mesma qualidade, garantindo um produto que salta aos olhos. O livro possui a diagramação tradicional de Rastro com três colunas em cada página que torna a leitura agradável e fluida. 

As ilustrações do interior são do já citado Huguenin, então a parte visual é mais do que satisfatória. A capa também é muito bem feita, uma ilustração tipicamente lovecraftiana onde vemos um grupo de investigadores noque parece ser um sítio arqueológico. O grupo está em vias de perceber o tamanho da encrenca em que se meteram. Há uma luz verde e fantasmagórica emanando de uma caverna numa noite de lua cheia. O tipo de cena que conjura aquela aura de horror cósmico.

Conclusões

Escudos como eu disse são polêmicos.

Quem gosta adora, quem não gosta fala mal de quem usa. Na verdade, cada narrador estabelece seu próprio estilo e usa as ferramentas que acha mais úteis. Na hora de narrar cada um utiliza o que estiver à mão e pronto.

Entretanto, o Escudo é apenas parte desse pacote e o Livro de Recursos do Guardião é muito bom. Vale a pena ter esse livro? Ele vai ser útil em sua campanha? Acredito que as respostas sejam sim para ambas. Para quem gosta de Rastro de Cthulhu e quer ter à mão informações adicionais, material interessante e ideias para seu jogo é um recurso extremamente funcional. Mesmo para os jogadores de Chamado de Cthulhu, o material pode se mostrar bem interessante uma vez que adaptações de um sistema para o outro não são tão complicadas. Além disso, não há Escudo de Chamado de Cthulhu no Brasil e este pode ser usado como substituto direto.

A Retropunk está com o Livro de Recursos e Escudo do Guardião em seu Financiamento Coletivo. Vale a pena dar uma boa olhada se você pensa em transformar Rastro em seu jogo de horror nos fins de semana.

Deixo aqui o link para os interessados, lembrando que ainda tem 50 e tantos dias de Financiamento, mas não deixe para a última hora.

RASTRO DE CTHULHU - RETROPUNK - FINANCIAMENTO COLETIVO

domingo, 20 de novembro de 2016

"O Dia mais Escuro" - A Nova Inglaterra imersa em uma escuridão inexplicável


Começou como um dia normal.

A manhã de 19 de maio de 1780 parecia como qualquer outro dia. Então, repentinamente entre 10 da manhã e 2 da tarde, os céus sobre a histórica região da Nova Inglaterra, na Costa Leste dos Estados Unidos começaram a escurecer até se tornarem negros como piche. A escuridão inesperada se estendeu a estados vizinhos como Maine e New Hampshire, chegando até Nova Jersey.

O fenômeno reportado por várias testemunhas horrorizadas lançou o que na época correspondia a quase metade do país, em uma onda de medo e caos. Uma demonstração assustadora de como pessoas normais reagem diante de situações inesperadas. 

O incidente segundo alguns foi tão inesperado e marcante que muitos interpretaram sua ocorrência como um inequívoco sinal de que o mundo estava prestes a terminar. Em determinados lugares, a escuridão foi tamanha que nem mesmo a lua ou as estrelas podiam ser vistas. Não apenas as pessoas ficaram alarmadas, animais também demonstraram um comportamento errático com aves domésticas se refugiando nos galinheiros e o gado retornando para o estábulo. Sapos e falcões noturnos, animais noturnos começaram a cantar e voar. Galos cantavam no meio do dia. Fazendeiros abandonaram os campos e voltaram para suas casas às pressas,preocupados com seus familiares. Os estabelecimentos comerciais fecharam suas portas e qualquer atividade foi suspensa.

Walter Connick, um famoso jornalista de Boston escreveu na edição do dia seguinte que "o mundo se tornou um lugar absurdamente escuro, ameaçadoramente apavorante e terrivelmente perigoso de uma hora para outra. Era como viver um pesadelo do qual não se podia despertar".

Em Morristown, o General George Washington relatou em seu diário pessoal a respeito da notória data: "O mais estranho dos dias, o sol desapareceu e as sombras pintaram campos e ruas como se a noite tivesse chegado mais cedo. Trevas completas, como a mais escura das noites".

Foi como um blackout inesperado e aterrorizante, mas obviamente nessa época não existia luz elétrica ou linhas de força. As pessoas estavam acostumados a depender de velas e lampiões, mas quando o dia se transformou subitamente em noite, muitos simplesmente perderam o controle. Afinal, não é sempre que um dia de sol se converte em "uma noite de negritude insondável", como descreveu outro cronista no Maine.

A causa para a escuridão não foi um eclipse solar, ao menos não que os astrônomos pudessem ter previsto. Não havia nenhum eclipse para esse dia, sendo que tais fenômenos são perfeitamente previsíveis através de mapas astrais e simples cálculos. Também não foi uma tempestade, embora algumas áreas da Nova Inglaterra tenham experimentado chuvas esparsas naquela mesma manhã. Nenhuma chuva poderia tornar o dia em noite. 

Então, o que poderia ter causado uma escuridão tão densa que o sol parecia ter sido apagado do céu?
    

Historiadores e cientistas ainda hoje tentam compreender o que aconteceu naquele dia e procuram formular uma resposta para a questão. Usando as informações registradas em jornais da época e diários pessoais de pessoas que escreveram sobre a ocorrência, ainda não foi possível explicar satisfatoriamente o fenômeno. A única certeza é que ele de fato ocorreu, a não ser que alguém queira sugerir que algum tipo de histeria coletiva atingiu a população da Nova Inglaterra. 

E de fato, a histeria marcou todo o incidente.

Compreensivamente, as pessoas entraram em pânico. Pessoas saíram pelas ruas gritando e chorando. Mulheres e crianças desmaiavam. Homens cometeram suicídio com tiros na cabeça. Igrejas lotaram de fiéis procurando ajuda e aconselhamento. Abrahan Davenport, um Juiz de Direito de Connecticut, escreveu no relatório da Corte de Justiça: 

"Serviços paralisados! Foi como se o mundo estivesse prestes a terminar! E francamente, havia razão para acreditar nisso! Ouvi gritos e discussões ásperas nas ruas. As pessoas se agrediam por qualquer motivo, muitas vezes fisicamente. Vi muitas pessoas chorando e se desesperando, sentando no meio fio com as mãos sobre o rosto. Eu desejava que a luz das velas pudessem aliviar o horror das pessoas, mas nada era capaz de contornar o temor presente nos olhos e expressões cheias de medo e apreensão. Eu não tenho vergonha de admitir que temi jamais ver o sol novamente".

O relato de Davenport não foi o único a constatar o estado de pânico que se instalou em várias cidades da região. O Massachusetts Herald de 20 de maio contabilizava os danos causados pela população enlouquecida na maior e mais populosa cidade da Nova Inglaterra:

"Várias lojas e estabelecimentos comerciais de Boston foram destruídos e saqueados. Uma agência dos correios foi depredada por uma turba que se formou repentinamente e começou a quebrar a fachada e destruir janelas. Na rua Sullivan nenhum vidro foi poupado. Dois homens saíram feridos quando tentaram conter a multidão de desordeiros. Um bonde puxado por cavalos foi virado e os animais apedrejados. Uma mulher foi atropelada por um dos animais em disparada e morreu. Uma casa foi incendiada e totalmente consumida pelas chamas. Tiros foram ouvidos por toda cidade".

Não apenas nas grandes cidades a situação foi de crise. Em uma época em que não havia telégrafo ou rádio, e a comunicação era precária, pessoas em áreas rurais, que viviam isoladas, não podiam recorrer a ninguém, nem mesmo aos seus vizinhos para pedir ajuda. Não havia como obter informações a respeito do que estava acontecendo. Muitos simplesmente se trancaram em casa e rezaram para que a escuridão terminasse.

A ideia de que poderia ser o Fim dos Tempos foi muito alardeada.


Uma boa parte da população da Nova Inglaterra era composta por protestantes fervorosos que interpretavam eventos naturais como Castigo Divino. Muitos viram no fenômeno um sinal de que Deus não estava satisfeito. Essa crença era reforçada por dois trechos da Bíblia que mencionavam textualmente o obscurecimento do sol como primeiro sinal do Apocalipse: "o sol escurecerá, e a lua não dará a sua luz, e as estrelas cairão do céu, e as potências dos céus serão abaladas" (Mateus 24:29) e "o sol ficou negro como serapilheira e a lua inteira ficou como sangue" (Revelações 6:12-13). Aos olhos de muitos fiéis o que havia acontecido era exatamente isso, o prenúncio do fim conforme descrito na Bíblia. Em algumas áreas, a lua assumiu uma coloração vermelho-alaranjada e as estrelas sumiram o que só serviu para renovar os temores iniciais.

Mas o que pensam os especialistas hoje em dia?

Teorias populares envolvem a influência de erupções vulcânicas do outro lado do mundo e a queda de meteoros como causas em potencial. Entretanto, a mais provável razão para a escuridão pode ter sido algo muito mais mundano - um incêndio ocorrido no Canadá. Examinando o crescimento dos anéis nos troncos de árvores em Ontario, cientistas foram capazes de determinar que um incêndio de enormes proporções ocorreu nessa região do Canadá, poucos dias antes do fenômeno da escuridão atingir a Nova Inglaterra. Eles especulam que uma combinação vento agindo sobre massas de fumaça grossa bem como um nevoeiro espesso possam ter contribuído para obscurecer o sol. Também havia uma severa seca na época, tornando um incêndio um acontecimento bastante provável. A teoria se encaixa com descrições de que havia um forte odor de fumaça e cinzas, além de fuligem cobrindo telhados e ruas no dia seguinte.

Esse não foi o primeiro "dia escuro" a ocorrer. Entre 1091 e 1971, cerca de cinquenta "dias escuros" foram registrados ao redor do mundo sempre causando consternação. Embora nós hoje em dia possamos zombar das pessoas na Nova Inglaterra de 1780 e dizer que agiram de modo tolo e supersticioso, reações semelhantes ocorreram na década de 1950, quando queimadas nas florestas de Alberta fizeram com que os céus de Massachusetts escurecessem novamente e as pessoas fossem dominadas por um temor quase palpável.


Como sabemos atualmente, o sol não pode simplesmente desaparecer, e em 20 de maio de 1780, ele ressurgiu nos céus da Nova Inglaterra com se nada tivesse acontecido. As pessoas correram para igrejas e templos religiosos para fazer orações de agradecimento pelo retorno da luz e pedidos para que tal coisa não acontecesse novamente. Pelo menos uma seita religiosa surgiu em face do fenômeno. Uma dissidência dos Quakers, os chamados Shakers se fixaram em Nova York e conseguiram converter centenas de pessoas, espalhando a crença de que a escuridão era o primeiro sinal de um Apocalipse vindouro.

Mais do que ser um fenômeno curioso, o "Dia mais Escuro" de 1780 serviu para mostrar a horrenda face que as pessoas podem assumir quando confrontadas com algo inexplicável. Em um período relativamente curto de trevas, toda e qualquer noção de civilidade se viu sufocada por uma onda avassaladora de superstição e temor. O que aconteceria com nossa civilização se essa escuridão durasse mais do que algumas poucas horas?

Talvez, francamente, seja melhor não saber, pois provavelmente nós não gostaríamos da resposta.

*     *     *

Vou confessar uma coisa.

Quando eu era criança vi algo parecido.

Eu devia ter uns oito anos de idade e lembro muito bem. Estava no colégio e na hora do recreio uma ventania repentina varreu o pátio e o tempo que estava claro e agradável mudou bruscamente. Ficou escuro, positivamente escuro! Como se o dia tivesse se tornado noite - ou assim me pareceu, e assim me recordo.

Foi algo inesperado e assustador, sobretudo por que muitas crianças começaram a dizer que o mundo estava terminando e que o sol havia sumido para sempre.

A situação só se acalmou quando os professores e inspetores foram chamados às pressas para reunir as crianças e conduzi-las para as salas. Explicaram que tudo estava bem e que não era nada de mais, mesmo assim, vários pais tiveram de ser chamados para buscar seus filhos, ainda chocados com o acontecimento.

Ao ler a respeito do "Dia mais Escuro" foi impossível não pensar nesse episódio da minha infância e ponderar que em uma escala muito menor também houve medo e angústia. Eu sei que, EU tive muito medo. Medo de não voltar para casa e não ver mais meus pais. Medo que o mundo fosse acabar. Realmente, em vista disso, não é tão difícil compreender a reação das pessoas diante de uma noite fora de hora que contraria tudo que elas estão acostumadas e se encaixa perfeitamente em suas crenças religiosas.

Lovecraft, o patrono desse blog, escreveu com enorme propriedade e eu, com a devida vênia, recorro a ele para encerrar esse artigo:



















Que se faça a luz!

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Rastro de Cthulhu está de volta - Leia a resenha do Livro por Clayton Mamedes


Olá cultistas,

Para quem não sabe, Rastro de Cthulhu, o fantástico jogo da Pelgrane Press, editado em terras brasileiras pela Retropunk no ano de 2010 está sendo re-lançado em Financiamento Coletivo. E com algumas ótimas surpresas e acréscimos! Se você participou, dê uma olhada! Se você não participou do Financiamento Original, essa é a sua chance de corrigir essa flata e colocar na estante esse belíssimo jogo.

Para quem não conhece ou quer conhecer um pouco mais a respeito do jogo, estou reeditando duas resenhas que foram publicadas em 2010 quando ocorreu o primeiro Financiamento Coletivo.

Esta primeira resenha é de nosso companheiro Clayton Mamedes e ele apresneta d euma forma direta qual a proposta do jogo e o que novos e velhos jogadores podem esperar dessa ambientação lovecraftiana.

Não foi preciso retocar absolutamente nada!

O texto continua atual e muito informativo. Perfeito para quem quer saber mais a respeito de Rastro e se vale ou não à pena entrar nesse Financiamento.

Minha dica?

Vale sim! Leia e tire suas conclusões.


Será apenas mais um?

Por Clayton Mamedes

Em geral não gosto de remakes. E creio que tenho toda a razão para tal. De uns quatro anos para cá, essa ondinha de refazer alguns filmes clássicos ganhou força em Hollywood. Títulos importantes de terror, como Sexta-Feira 13HalloweenHorror em Amityville e Dia dos Mortos foram refilmados. Isso sem contar os filmes orientais que ganharam a versão americana, como O Grito e Uma Chamada Perdida. O que todos eles têm em comum: são horríveis, muito inferiores aos originais.

Porém, existem alguns remakes que são excelentes, adicionando novas perpectivas ao filme original, ou fazendo uma homenagem ao mesmo. Entre essas obras notórias eu incluo o excelente A Noite dos Mortos Vivos (Night of the Living Dead) de Tom SaviniMadrugada dos Mortos (Dawn of the Dead) de Zack Snyder e Viagem Maldita (The Hills Have Eyes) de Alexandre Aja. Sim, estes são remakes que se destacam e muito no mar de mediocridade.

Este papo de remakes veio à minha mente ao ler um exemplar de Trail of Cthulhu que caiu no meu colo. Eu tinha a ideia fixa de que não valeria a pena aprender um novo sistema para jogar Cthulhu. Quase o mesmo raciocínio de pagar ingresso para assistir a um péssimo remake. Porém, desta vez, a refilmagem era das boas!

O Jogo


Creio que não há necessidade de muitas explicações sobre o estilo de jogo de Trail of Cthulhu: trata-se de um RPG baseado nos contos de H.P. Lovecraft, onde descobertas blasfemas, horrores ancestrais e a insanidade caminham lado a lado. Como todo bom remakeTrail of Cthulhu se baseia na mesma fonte que seu antecessor e inspirador, o clássico Call of Cthulhu, que para muitos, é o melhor RPG já lançado. Assim como no original, você interpreta um Investigador, que é arremessado contra o desconhecido sem pudor algum. O resultado é sempre catastrófico.


Muitos elegem Call of Cthulhu como o jogo de RPG mais letal que existe. E aqui em Trail of Cthulhu não é diferente. O risco de você perder o seu personagem é imenso, tanto na parte física quanto mental. É isso que faz a coisa ficar legal, pois nos contos de H.P. Lovecraft, o maligno quase sempre triunfa. Não é bem similar aos filmes de horror? Pense no final de O Bebê de RosemaryO Exorcista e A Profecia, só pra citar alguns. Esta é a essência do gênero.

Falando em essência, os dois jogos são similares. O que é muito bem-vindo. Vale ressaltar que em Trail of Cthulhu não existe a opção de se jogar em outras épocas (em Call of Cthulhu existem parâmetros para 1890, 1920 e 1990), apenas os anos 30. Contudo é bem simples adaptar algo para outros anos, requerendo apenas um pouco de pesquisa. Sinceramente, a ausência de tal característica é insignificante: prefiro jogos na década de 30 e as conversões que existem em Call of Cthulhu são tão básicas que nem fazem falta.

O Sistema

Trail of Cthulhu dá outros ares ao bom e velho Call of Cthulhu ao escolher um sistema de regras mais moderno e enxuto. O GUMSHOE é utilizado também em The Esoterrorists e Fear Itself, e se mostra como um sólido sistema para jogos investigativos.


Todo o livro é escrito sob dois pontos de vista: o estilo de jogo purista (mais fiel aos contos de H.P. Lovecraft) e pulp, inspirado nos trabalhos de Roberto E. Howard, o criador de Conan, o Bárbaro. Assim existem variações em algumas regras, como combate e construção de personagens. Estes são criados de uma maneira peculiar, já que em GUMSHOE não existem atributos. Os personagens são feitos através de distribuição de pontos em várias perícias. A quantidade de pontos inicial é definida de acordo com o número de jogadores presentes, sendo maior com menos pessoas. Existem perícias que fazem o papel de atributos, tais como SanityStability e Athletics.


O processo de criação se inicia com a escolha da ocupação do personagem, em uma relação que apresenta as costumeiras profissões do universo de H.P. Lovecraft, como Diletante, Autor e etc. Cada ocupação acompanha uma lista de habilidades ocupacionais, a faixa de Credit Rating e uma habilidade especial (como um médico ter acesso a documentos médicos e áreas reclusas de hospital).

O próximo passo de criação de personagem é um dos mais interessantes do sistema: a definição dos Drives, ou Motivações – uma extensão dos Risk Factors como vistos em Fear Itself. Através da escolha de simples conceitos, como Curious, ou Duty, o personagem define a sua motivação e, consequentemente, o seu comportamento em situações de risco. Lembra-se daquele seu amigo que abriu a porta para verificar a fonte daquele uivo medonho sob a lua cheia? Ele não era tolo. Estava apenas seguindo o seu Drive de Curioso. O fato interessante é que ao negar esta característica, o personagem fica sujeito a perda de Stability. Existem alguns Drives inspirados no modo pulp, como Adventure e Revenge. Esta mecânica resulta em uma maneira simples e fluida de explicar a motivação e algumas ações durante o jogo, muito mais coesa do que um sistema de vantagens e desvantagens.

O toque final é dado pela definição das perícias ou habilidades, distribuindo os pontos definidos da maneira citada acima. Fácil.

O sistema de testes é muito simples e funcional, utilizando somente um dado de seis faces para os rolamentos, que devem bater uma dificuldade estipulada pelo Keeper. Cada perícia é acompanhada por uma pilha (ou pool), com um valor inicial igual ao seu nível. Em um teste desta perícia, o jogador pode gastar estes dados da pilha, adicionando 1 ao resultado final do rolamento – uma premiação pelo esforço extra.


O combate funciona de maneira peculiar: todos os seres possuem uma característica chamada de Hit Threshold, que estipula a facilidade com que são atingidos em combate. Um ser humano normal tem um HT de 3. Criaturas do Mythos têm geralmente um valor superior. Assim, o atacante deve rolar a sua perícia em combate (ScufflingFirearms, etc) e tentar bater o Hit Threshold; em caso positivo, o ataque foi bem-sucedido e o dano é rolado, com um dado modificado pelo tipo de ataque (+2 para armas de fogo e por aí vai). O valor final é subtraído dos pontos de vida do alvo. Sem segredo.


Obviamente existem outras regras para os complicadores em combate, como explosões, combate em massa, cobertura, armadura, etc. Nada que fuja do normal e bem parecido com os outros títulos que utilizam o GUMSHOE.

A grande adição de Trail é, sem sombra de dúvida, a melhoria do sistema de sanidade que foi aprimorado a partir das mecânicas vistas em Fear Itself, com a inclusão da perícia Sanity, acompanhada pela pré-existente Stability.

Stability representa a resistência mental e emocional a diversos traumas, sejam eles naturais ou não. Funciona como se fosse a característica Health de sua mente. Já a Sanity é a capacidade de acreditar, temer, ou se preocupar sobre algum aspecto do mundo ou da humanidade como nós conhecemos. Enquanto Call of Cthulhu só utiliza um atributo destes, Trail já introduz as duas características com o objetivo de medir em separado a saúde mental e ignorância induzida pelo Mythos. Assim, temos o caso de Armitage, que apesar de ter lido o Necronomicon e enfrentado o horror de Dunwich, apresenta uma postura totalmente normal e equilibrada. Este é o resultado de uma mente que já perdeu alguns pontos de Sanity, mas ainda possui uma alta Stability.

Enquanto Stability pode ser minada também através de acontecimentos naturais (mortes, acidentes violentos, etc,), a Sanity só pode ser perdida por duas maneiras: quando o seu pool de Stability cai a 0 ou menos, através de um evento ligado ao Mythos; ou por você utilizar a perícia Cthulhu Mythos.

Quando sua Stability atinge 0 até -5, você está abalado, conseguindo executar o seu trabalho, mas de maneira distraída. Em jogo você não pode gastar pontos dos pools de perícias investigativas e a dificuldade para os outros rolamentos aumenta em 1. Com Stability indo de -6 até -11 a sua mente estará arruinada, e você adquire uma doença mental permanente acumulando os efeitos de estar em choque (acima). Suas únicas ações serão lutas descontroladas ou estupefatação incoerente. Você ainda perde 1 ponto permanente de Stability. Já quando o valor atinge -12 ou menos, você está permanentemente insano, e tem o direito de executar uma última ação maluca. Faça um outro personagem. Uma outra maneira de representar a Insanidade Temporária, Indefinida e Permanente de Call.


Existem ainda outros detalhes com referência à Sanidade, como destruição de Pilares de Sanidade e regrinhas para negar a perda de pontos, como questionar a realidade do evento (“Você tem fotos dessa criatura?”) ou desmaiar! Neste último caso, o personagem só perde 1 ponto de Sanidade mas não exerce ações na cena. Porém existem dicas para o Keeper usar o personagem desmaiado de maneiras criativas e cruéis, dando a entender que tal ação deve ser punida através da trama e interpretação. Uma boa ideia.


Outro aspecto importantíssimo do sistema é o tratamento diferenciado dado às pistas, de vital importância para um jogo investigativo. E a velha máxima GUMSHOE, já explorada nos outros títulos volta à tona:
Cenários investigativos não são sobre encontrar pistas.
Eles são sobre interpretar as pistas que você encontra.
Para você encontrar uma pista basta (1) o seu investigador estar presente em um local onde haja alguma informação relevante disponível (2) possuir a habilidade necessária para encontrar a pista (3) falar para o Keeper que você a está utilizando. Sem testes.

Contudo em Trail of Cthulhu, esta abordagem ganhou alguns pormenores, como os SpendsBenefits e Dedicaded Pool Points. Ao encontrar uma pista, o jogador ou o Keeper pode sugerir a utilização de alguns pontos do pool da perícia correspondente. Ao fazer isso, o jogador adquire informações extras sobre a pista em si, gerando algum benefício futuro. Existe até mesmo uma tabela relacionando diversos benefícios em situações ou testes futuros que você poderia obter. Já os Dedicated Pool Points são pontos extras que garantem bônus em situações específicas: se você leu um tomo sobre as catacumbas subterrâneas de Paris, você pode aumentar o seu pool de Archeology quando estiver estudando algo relacionado.

A impressão final é que o sistema de regras é simples e enxuto, permitindo um excelente ritmo na partida. As regras de sanidade, sendo as mais importantes do gênero, foram lapidadas, resultando em mecânicas interessantes e bastante permissivas.

O Livro

Trail of Cthulhu nos é apresentado em um belo volume de 248 páginas, com a capa colorida e o interior em preto e branco. Porém não é um preto e branco qualquer: as belíssimas ilustrações possuem uma tonalidade sépia que, juntamente com as bordas douradas e fundo de páginas envelhecidas, nos remetem diretamente à leitura de um tomo antigo. O conteúdo é dividido ao longo de 7 capítulos e encerrado com excelente aventura introdutória (eba!) e o tradicional apêndice com referências e índices.

Entre os capítulos temos Introduction, The InvestigatorCluesTests and ContestsThe Cthulhu MythosThe ThirtiesPutting It All Together e Campaign Frames. Alguns possuem um evidente conteúdo, tendo como base o seu título. Porém outros merecem uns breves comentários.


O capítulo dedicado às Criaturas do Mythos é bem peculiar. Nas descrições das divindades, não existem quaisquer características, exceto as penalidades de Stability e Sanity. A descrição é composta basicamente por vários fatos arbitrários e misteriosos, pois o total conhecimento destes seres é realmente impossível de se possuir. E creio que não é necessário saber as estatísticas de Cthulhu ou Azathoth em combate...A seleção de seres é também um pouco diferente da encontrada em Call of Cthulhu: fiquei supreso ao ver MordiggionMormo e Masqut. Na descrição das criaturas existe um campo chamado de Investigation, onde existem informações potenciais que podem ser obtidas pelos investigadores ao (1) falar com policiais, (2) coletar pistas e (3) utilizar técnicas forenses. Ao final temos breves descrições de tomos malditos, magias e cultos. Bem breves mesmo.


Já no capítulo The Thirties temos uma análise de várias regiões do globo sob o ponto de vista de atividades do Mythos, incluindo umas linhas sobre o nosso país, com comentários sobre o regime de Getúlio Vargas, a criação da Umbanda, informações sobre alguns eventos bizarros e o destino de Percy Fawcett na floresta brasileira. No mínimo curioso.

Em Putting It All Together e Campaign Frames existem diversos tópicos para auxílio ao Keeper, como dicas para manter o ritmo, variação de regras, estilo e etc. Útil, mas nada inovador.
No Apêndice, após as regras de conversão de Basic Roleplaying para GUMSHOE, temos a lista de referências, que é bem extensa e detalhada. Porém, só contabiliza várias fontes de literatura e mais uns quatro títulos de RPG. Ficaram de fora os outros RPGs do gênero e filmes.

Após terminar a leitura deste magnífico livro, posso afirmar categoricamente que se trata de uma das melhores obras em que já coloquei as mãos. Sem dúvida alguma Trail of Cthulhu conseguiu um lugar de honra em minha seleção, acompanhado dos também excelentes e lendários Call of CthulhuKult e Don’t Rest Your Head - uma pequena lista dos melhores livros básicos de RPG que pude ler.

Se fosse para dar uma nota seria um 10 bem cheio: uma obra completa e repleta de qualidades, não apenas mais um remake caça-níqueis, mas sim uma verdadeira homenagem que, em certos momentos, supera o original.

Se tiver a oportunidade, leia. Se puder, jogue. Se achar, compre.

Trail of Cthulhu
Autoria: Kenneth Hite e Robin D. Laws (regras)
Arte: Jérôme Huguenin
Editora: Pelgrane Press, 2007
Formato: Capa dura, preto e branco, 248 páginas
Sistema: GUMSHOE
Idioma: Inglês
Preço: US$ 20,95 (PDF) e US$ 39,95 (impresso + PDF)

Rastro de Cthulhu já está em Financiamento Coletivo no link abaixo:

RASTRO DE CTHULHU - FINANCIAMENTO CATARSE