quinta-feira, 2 de novembro de 2017

RPG do Mês: Tales from the Loop - Concluindo a Resenha


E estamos de volta com a resenha completa de Tales from the Loop, o RPG que leva os jogadores aos "anos 80 que nunca existiram". Nessa segunda e última parte da resenha vamos falar das regras e do sistema da ambientação.

Pra começar, o sistema de Loop é bastante simples. A ideia por trás dessa simplicidade é permitir que as ações dos jogadores e sua criatividade ao interpretar os personagens seja o fio condutor da trama, mais do que rolamentos e os números expressos na ficha. Eu acho isso bastante louvável, sobretudo porque essa não é uma ambientação que deva ter um sistema pesado prevendo cada ação e cada resolução. Se assim fosse, o jogo sem dúvida perderia muito de sua leveza e encanto.

Quem conhece o sistema de Mutant: Year Zero vai reconhecer uma série de elementos presentes aqui que remetem diretamente a esse jogo. Loop usa uma simplificação do sistema, que por sua vez já é bem simples e direcionado. Mas antes de mergulhar no crunchy, vou falar dos personagens e como se dá a sua criação.


Os personagens são definidos através de Estereótipos bem claros que vão conceder as linhas gerais para criação do personagem. Esses estereótipos se concentram em arquétipos básicos de crianças/adolescentes em filmes do gênero. Qualquer pessoa que assistiu Goonies ou Strange Things vai facilmente ser capaz de identificar os heróis desses filmes dentro dos estereótipos apresentados no livro. No momento de criação dos personagens, a primeira coisa que o jogador faz é escolher um dos oito estereótipos oferecidos. Em linhas gerais, os estereótipos são os seguintes:

Bookworm (o Leitor) - Que é basicamente uma criança curiosa e inventiva, que se deixa envolver pelo estudo e pela vontade de aprender e compreender o mundo a sua volta. Em geral são pequenos gênios em alguma área. Nos anos 80 - ainda sem a internet, o conhecimento vem de livros e bibliotecas.

Computer Geek (Nerd de computadores) - Computadores, aparelhos eletrônicos e máquinas em geral desempenham um papel muito importante no mundo do Loop. Eles fazem arte do dia a dia de adultos e crianças. O Computer Geek é uma criança genial quando o assunto é entender como máquinas funcionam e adaptá-las para que funcionem como ele deseja. 


Hick (Caipira) - São crianças que vivem em áreas afastadas do ambiente urbano, geralmente no campo, em fazendas e propriedades rurais. Elas tem que dividir seus dias na sala de aula com tarefas vitais para o funcionamento de sua casa. Isso faz deles crianças mais focadas e adaptadas ao mundo adulto de responsabilidades e compromissos.

Jock (Esportista) - O ambiente dessas crianças são os campos e as quadras esportivas. Eles vivem aprimorando suas capacidades atléticas e refinando suas habilidades físicas até atingir a perfeição. São os heróis dos times do colégio. Em geral são competitivos, mas ótimos companheiros sempre dispostos a fazer tudo pelo time.

Popular Kid (Criança Popular) - Esses são os meninos e meninas que todos querem ser ou ter como amigos. Eles ditam as tendências e tudo o que fazem acaba sendo copiado ou virando moda para os outros. Os populares possuem um charme natural e uma capacidade inerente de convencer e liderar os demais, isso se não tiverem cedido ao próprio egocentrismo.


Rocker (Roqueiro) - Muito mais do que o sujeito de preto, com cabelo comprido e descolorido, o roqueiro adota um estilo de vida que prima pela liberdade. Ele é o rebelde que encontra na música uma forma de expressão que lhe permite escapar da dura monotonia em que as crianças estão geralmente confinadas.

Troublemaker (Criança Problema) - Nem todas crianças são obedientes e ordeiras, existem aquelas que não baixam a cabeça para nada e ninguém. Os adultos encontram dificuldades para lidar com essas crianças, e as chamam de "problemáticas". Essas são as crianças que se metem em confusões, brigam, praticam delinquência, furto, bully e todo tipo de transgressão das regras.

Weirdo (Esquisito) - Todo colégio tem um aluno que não se adapta e parece sobreviver por conta própria. O Esquisito parece viver em seu próprio mundo e não se importa com as convenções ditadas pela maioria. Ele não se vê como um rebelde, ele apenas expressa quem realmente é, e que se dane quem não gostou do que viu.


Uma vez escolhendo um desses estereótipos, o jogador define a idade de seu personagem. Isso é essencial uma vez que a idade concede o número de pontos que o personagem tem para ser distribuído nos atributos básicos. Portanto, se o seu Esportista tem 12 anos, ele terá exatamente 12 pontos para distribuir nos atributos. Em Tales from the Loop, os personagens devem ter qualquer idade entre 10 e 15 anos. A razão disso é muito bacana, o livro explica que depois dos 16 anos, os personagens deixam de ser crianças e suas preocupações passam a ser outras além de resolver mistérios e se meter em confusão com seus melhores amigos. É também a idade em que eles podem pegar um carro e fugir do perigo... portanto, quando um personagem completa seus 16 anos, ele se aposenta e está na hora de criar uma nova criança. Ah sim, não há nenhuma injustiça em receber menos pontos de atributos, optando por criar uma criança mais nova, digamos, de 10 anos. Embora nesse caso, seu personagem tenha menos pontos para distribuir, ele contará com uma quantidade maior de Pontos de Sorte que são essenciais para o jogo e que serão explicados mais adiante.

A ficha de Tales from the Loop apresenta quatro Atributos (attributes) distintos que englobam uma vasta gama de características:

Body (Corpo) diz respeito a todos os traços físicos e atléticos;
Tech (Técnico) se refere a conhecimento técnico e discernimento quanto a tecnologia em geral;
Heart (Coração) engloba as habilidades sociais de carisma e comunicação;
Mind (Mente) envolve a inteligência, sabedoria e senso comum.


Os jogadores devem distribuir entre 1 e 5 pontos em cada atributo, sendo que dois pontos é considerado a média e cinco o ápice que uma criança é capaz de atingir. É interessante que cada vez que o personagem faz aniversário, ele ganha um ponto extra e perde consequentemente um ponto de sorte. Cada atributo governa um conjunto de três Habilidades (skills), totalizando, portanto, 12. Quando o jogador escolhe um estereótipo, ele é informado de quais são suas Habilidades Chave inseridas no tipo de personagem: Um Esportista, por exemplo, tem como Habilidades Chave Força (Force), Movimento (Move) e Contato (Contact). Durante a criação do personagem, o jogador deve distribuir 10 pontos nas habilidades, sendo que naquelas que são definidas como chave ele pode alocar até três pontos, em todas as demais, o máximo é apenas um ponto.

Tudo é bem fácil e tranquilo e a customização depende apenas do que o jogador quer personificar entre os interesses da criança por ele criada. Para concluir o personagem, é preciso definir uma série de elementos que fazem o personagem ser único. Esses elementos incluem um problema, uma motivação, um orgulho e uma âncora.

O Problema (Problem) é algo que atormenta e assombra seu personagem e tira dele o sono. Os problemas servem para ser enfrentados e permitem o crescimento e aprendizado da criança.
A Motivação (Drive) é o que torna a criança apta a investigar um Mistério e tentar resolver um caso.
O Orgulho (Pride)  é algo que define a criança e faz dela um pequeno herói capaz de enfrentar as dificuldades quando estas se apresentam.
A Âncora (Anchor) é geralmente uma pessoa que serve como porto seguro para a criança quando as coisas estão ruins e que vai ajudá-la sem julgar ou bancar a condescendente.


Esses elementos ajudam a definir os traços de personalidade de sua criança e aquilo que a torna única durante as aventuras de Loop. Em seguida, cada jogador escolhe uma criança do grupo com quem tem maior afinidade e define secretamente o motivo pelo qual ele/ela é seu melhor amigo. Isso é interessante para formar a dinâmica do grupo no decorrer das sessões. Outro elemento interessante diz respeito a definir relacionamentos com NPCs criados pelo próprio jogador. Com isso, o "chapéu de mestre" passa momentaneamente para os jogadores e esses criam pessoas importantes que podem ser introduzidos no decorrer dos Mistérios como indivíduos que fazem parte da vida do personagem e que fornecem subsídios para o narrador escrever futuras aventuras.  

O jogador também precisa definir um Item Icônico para sua criança, um objeto que ele sempre está usando e que é de alguma forma importante para o personagem. Esse item icônico pode ser mudado no decorrer das aventuras, mas nunca pode ser perdido ou destruído. Ele sempre está ao seu alcance e quando empregado em um teste, concede uma bonificação.

Finalmente, resta escolher um nome, descrever a aparência e escolher sua música favorita. Pronto, seu personagem está pronto para enfrentar os Mistérios do Loop. O livro oferece mais uma série de perguntas que podem ser respondidas pelos jogadores para aprofundar o background de seu personagem, coisas como quem são os seus pais, como é seu quarto, se a família tem dinheiro e como é estudar no colégio ou viver na cidade. Essas questões ajudam bastante a construir seu personagem e é altamente recomendado responder ao menos algumas delas para se entrosar. Da mesma maneira, há uma lista de perguntas que podem ser feitas para o grupo que define a dinâmica e funcionamento deles como equipe, perguntas como: onde vocês se conheceram, onde vocês costumam brincar, quais são suas brincadeiras favoritas, onde vocês se reúnem, etc...


A criação de personagens é bem rápida e permite que os jogadores dediquem mais tempo a construir a personalidade de seu personagem do que combos mirabolantes. Como resultado, as características psicológicas de sua criança serão mais bem definidas e ela será bem mais do que uma série de números numa folha de papel.

O Sistema de Tales from the Loop utiliza apenas dados de seis faces. Estes são utilizados apenas quando surge uma Dificuldade (Trouble) que precisa ser enfrentada e superada. Este é um sistema de formação de Dice Pool, ou seja, o jogador soma o atributo e a habilidade mais adequados para superar a Dificuldade e rola um número de dados. O Número que deve ser obtido para obter sucesso é sempre SEIS. Todos os outros números são um fracasso. A primeira vista pode parecer muito difícil e especialmente cruel para os personagens, mas a ideia é que elas são crianças e como tal, as coisas tendem a ser mais difíceis. Em contrapartida, um sucesso obtido, geralmente é o suficiente para superar a Dificuldade encontrada.

Por exemplo, se o personagem precisa saltar um buraco para atingir o outro lado de uma sala, ele deverá rolar um número de dados igual a Corpo + Força. Ele rola todos esses dados e tenta obter pelo menos um seis, oq ue permite a ele transpor o buraco e vencer a Dificuldade.


Para ajudar a superar essas Dificuldades, os personagens possuem uma série de trunfos que aumentam o número de dados rolados ou incluem ao menos um sucesso automático. Utilizar objetos especialmente adequados para uma situação, por exemplo uma corda para uma ação de escalada, fornece dados extras (o mestre define de 1 a 3 dados). Usar o Item Icônico sempre concede +2 dados. Recorrer ao seu motivo de orgulho concede um sucesso automático e assim por diante. Em caso de uma falha, sempre é possível recorrer à Sorte e rolar novamente todos os dados para dessa ver conseguir resolver uma situação.

As regras permitem também Fazer uma Nova Tentativa (Pushing the Roll). Com isso, o personagem tenta superar a Dificuldade novamente buscando uma nova abordagem ou simplesmente sendo teimoso e não se dando por vencido. O problema é que tentar novamente pode ter consequências desagradáveis caso ocorra uma nova falha.

Em termos de jogo, as crianças não possuem "Pontos de Vida", ao invés disso, temos quatro condições que definem o estado de ânimo do personagem. Se uma dessas condições for obtida como resultado de uma circunstância (digamos levar uma bronca de um professor ou tomar um cuecão de um Bully) a caixa mais adequada deve ser checada e imediatamente o personagem tem um dado a menos para seus testes. As condições negativas incluem estados como chateado, assustado, exausto e ferido. Quando todas as quatro forem marcadas, o personagem está "quebrado", ou seja, não é mais capaz de agir e precisa ser levado até sua Âncora, para um lugar onde seus amigos o ajudarão a se recuperar ou até um local seguro onde ela possa descansar. Alguns personagens, sobretudo, os melhores amigos, podem ajudar a curar as condições e recuperar esse "dano" sofrido. É interessante notar que raramente as crianças em uma aventura de Tales from the Loop irão morrer, isso até pode acontecer, mas na maioria das vezes, elas apenas ficarão assustadas ou frustradas, raramente feridas com severidade.


Existe uma mecânica de grau de sucesso que permite ao personagem, no caso de múltiplos resultados positivos atingir uma proeza superior. Com vários sucessos, o personagem é capaz de ajudar seus companheiros ou realizar a tarefa com maior desenvoltura, graça e aptidão. Efeitos extras ajudam a resolver as situações de modo satisfatório com um resultado superior.

O sistema de Tales from the Loop é tranquilo de ser aprendido e fácil de ser transmitido para os jogadores. Uma breve explicação é suficiente para apresentar a mecânica, o que torna o jogo uma excelente opção para levar em Encontros e Eventos de RPG.

O livro dedica dois grandes capítulos a criação da Paisagem do Mistério, a cidade onde as aventuras de Loop irão se passar. Há dois cenários prontos, um na Suécia (as Ilhas Mälaren) e um nos Estados Unidos (na cidade de Boulder) que oferecem ótimas opções para centrar sua campanha. Francamente, no meu entender, o segundo é uma opção muito mais acessível. As duas cidades são bem parecidas, com cerca de 70 mil habitantes, casas suburbanas com cercas brancas, shoppings, lojas de conveniência, estradas e parques públicos. O grande diferencial da cidade para as demais é justamente a presença quase onipresente do Loop. As imensas torres, as instalações cercadas por muros altos e as luzes criam uma aura permanente de mistério. O que estaria acontecendo lá dentro?


A Paisagem do Mistério oferece um breve panorama de cada localidade, alguns habitantes que podem ser usados como NPCs e pessoas que podem aparecer na sua história como o delegado, médico, diretor do colégio são apresentados. No entanto, o capítulo não vai muito fundo nessas descrições, o objetivo é que os próprios jogadores contribuam para a construção das cidades e da população residente. Eu gosto dessa ideia de dar aos jogadores a oportunidade de desenvolver a cidade de acordo com suas próprias expectativas, sem falar que isso também desafoga o Narrador. Com base nessa contribuição dos jogadores, fica mais fácil para o mestre criar suas histórias e desenvolver as tramas centradas nos personagens.

Campanhas em Loop podem ser um pouco mais complicadas, já que os personagens tem um "prazo de validade" que abrange no máximo 5 anos de suas vidas. Em um primeiro momento Loop parece mais adequado para one-shots ou no máximo campanhas curtas. De fato, a proposta do jogo sinaliza com algo nesse sentido, contudo por se tratar de um mundo de fantasia e imaginação, tudo é possível. Penso em uma campanha se passando ao longo de um ano tratando de espionagem e guerra fria com agentes tentando roubar os segredos do Loop ou quem sabe uma campanha centrada em uma invasão silenciosa de alienígenas que planejam dominar a cidade e usar as instalações científica em seus planos. Há muitas opções e folhear o livro é o bastante para ter altas idéias para aventuras dentro de gêneros tão variados quanto fantasia, ficção científica, investigação e até horror.

Para ajudar o mestre a entender qual a pegada do jogo, o livro básico oferece não apenas aventuras prontas, mas uma mini-campanha composta de quatro episódios chamada "Four Seasons of Weird Science" (Quatro Estações da Ciência Bizarra). Como diz o próprio título, a campanha se passa ao longo de um ano com aventuras acontecendo cada uma em uma estação diferente. O título também dá uma pista do que trata a campanha ao mencionar "Ciência Bizarra". A trama é justamente sobre invenções estranhas, criações esquisitas e projetos científicos que saem do controle e ameaçam a população da cidade.


Eu gostei da campanha, mas é claro, as histórias precisam de uma pequena adaptação (um toque pessoal) para funcionar corretamente. Algumas são mais interessantes que outras, mas no geral, cada uma delas possui seus atrativos, a campanha é uma excelente maneira de introduzir os jogadores no universo de Tales from the Loop.

Caras, eu não tenho palavras suficientes para elogiar esse livro.

Não foi por acaso que Tales from the Loop abocanhou os principais prêmios do Ennies Awards (o Oscar dos RPG) em 2017. É um livro lindo, com uma arte e diagramação incríveis, texto fluido e gostoso de ler, ideias sensacionais e um sistema que casa perfeitamente bem na proposta. Para quem gosta do tema, ficou animado com séries no estilo Stranger Things e que sente uma onda de saudosismo cada vez que ouve os acordes iniciais de Beat It ou Thriller, esse pode muito bem ser o RPG que você estava esperando faz tempo.


6 comentários:

  1. Muito legal. Esperando alguém trazer por financiamento coletivo. =D

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  2. Caso seja publicado no Brasil , tomara que Tales from the Loop tenha um capítulo para situar histórias em nosso país .

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  3. No Brasil qual seria o local ideal? Varginha?

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    1. A sugestão é boa :) Também poderia ser uma cidade fictícia do interior ou na Amazônia .

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    2. Qual que foi a cidade do ET Bilu?? Taí um bom cenário kkkkkk

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