domingo, 30 de março de 2014

Numenéra Resenha parte 2/3 - Regras e Mecânica de Jogo


Seguindo em frente com a resenha completa do Livro Básico de Numenéra.

Eu gostei bastante da ambientação e do processo de criação dos personagens em Numenéra, mas o que dizer do sistema de regras criado pelo Monte Cook? Vamos falar a respeito dele, à seguir...

Não são poucas as vezes em que uma ambientação é muito bem produzida e incrivelmente atraente, mas acaba pecando no que diz respeito às regras. Isso tende a ser um tremendo balde de água fria, principalmente quando você depois de ler as descrições já começa mentalmente a imaginar as estórias que vai escrever. E a medida que eu lia as descrições do Nono Mundo, seus mistérios, perigos e maravilhas ia me dando aquela sensação de que não iam faltar ideias para costurar tudo aquilo em aventuras. Chegou um momento em que eu parei de ler e pensei comigo mesmo: "vou dar uma olhada no sistema e acabar com a curiosidade".

Comecei a ler devagar, absorvendo cada detalhe da mecânica de jogo, registrando os pormenores e procurando por regrinhas escondidas nas entrelinhas. Duas coisas que eu procuro em um novo RPG, que de fato, não abro mão são possibilidade de improviso e regras que ficam escondidas em meio a narrativa.

Na minha modesta opinião, um jogo que tem muitas regras ou pior, que não permite um certo grau de maleabilidade acaba amarrando as mãos do narrador e dos jogadores resultando em algo frustrante. A regra deve ser um referencial e não um limitador. Uma coisa que eu realmente não tolero nos jogos que escolho me tornar narrador, são regras que acabam influenciando diretamente a estória. Eu gosto de pensar que as regras são um acessório da estória, elas não podem ser mais importantes que o curso da narrativa ou a forma como a estória é contada. Por isso sou fã de sistemas mais simples que permitam o jogo fluir de forma rápida: o jogador diz o que quer fazer, dados são rolados, o narrador descreve o que aconteceu. Pronto! Rápido e fácil, sem firulas.

A boa notícia é que Numenéra prima pela agilidade e flexibilidade. As coisas correm bastante soltas e há espaço de sobra para que o narrador interprete com presteza o que aconteceu e com base nele improvise a descrição do resultado.

Mas vamos falar um pouco da ficha do personagem:




Existem três atributos básicos expressos na ficha; MIGHT ("Poder") que se relaciona a força, constituição e qualquer façanha física, SPEED ("Velocidade") que evoca rapidez, agilidade e coordenação e finalmente INTELECT ("Intelecto") que é a parte mental e exige raciocínio e astúcia).

Cada personagem quando criado possui um determinado número de pontos (pool) em cada atributo, variando de acordo com suas escolhas de TIPO, DESCRIÇÃO e FOCO durante a criação do personagem. É importante entender que esse pool irá variar enormemente no decorrer do jogo sendo gasto pelo próprio jogador para conseguir alguma manobra, para facilitar uma ação ou como decorrência de um fator externo (leia-se, dano).

Quando um pool é reduzido a zero o personagem é considerado ferido e sofre com redutores que dificultam suas ações, quando dois atributos são reduzidos a zero o personagem pode desabar pelo stress físico ou mental, quando três chegarem a zero, seu personagem está morto. E nas palavras do jogo, "morto é morto". Portanto, o importante no sistema é manter seu personagem com atributos positivos ao longo da aventura.

Numenéra utiliza apenas o d20 e mais raramente o d10 e o d6. É apenas deles que os jogadores vão precisar para fazer seus decidir seus resultados e conduzir o jogo. Exatamente isso que você leu: "Os jogadores" vão conduzir o jogo. Em Numenéra o narrador raramente vai rolar um dado para decidir o que aconteceu, os rolamentos TODOS ficam por conta dos jogadores.

Numenéra possui um sistema de Teste de Dificuldade. Cada ação corresponde a um grau de dificuldade manifestada em NÍVEIS DE DESAFIO que vão de 0 (o mais fácil que nem precisa ser testado) até 10 (o mais complexo e que dificilmente será atingido). Cabe ao narrador determinar qual a dificuldade de uma ação e estabelecer o Nível de Desafio. Escalar um muro baixo com vários pontos de apoio pode ter uma dificuldade pequena, digamos um 2. Já escalar um muro mais alto, com poucos pontos de apoio, durante uma chuva pode ter dificuldade 5.

Para fazer um Teste, o narrador determina o Nível e a partir dessa dificuldade se obtém qual o número alvo que precisa ser obtido no d20. O número alvo é sempre o nível de desafio vezes 3. Portanto, no primeiro exemplo, para escalar o muro mais baixo e com pontos de apoio bastaria um "6" no d20, ao passo que o muro mais alto, com poucos pontos de apoio, durante uma chuvarada exigiria um "15".

Essa é a mecânica básica do jogo, entender esse princípio simples já é meio caminho andado.

O leitor mais atento deve ter percebido que através dessa regra, rolando exclusivamente o D20 o máximo que se pode obter é "20". Portanto, Níveis de Dificuldade 7, 8, 9 e 10 não podem ser alcançados pois demandam somar 21, 24, 27 e 30 respectivamente.

Para isso, existem modificadores que o jogador pode empregar para que seu personagem tenha êxito num teste. Os modificadores reduzem o NÍVEL DE DESAFIO em um degrau e permitem que a dificuldade decresça até chegar a um grau aceitável. Há três modificadores que o jogador pode invocar para reduzir o Nível de Desafio de um Teste, são eles: Effort (Esforço), Skill (Habilidade) e Asset (Recursos).

O Effort diz respeito a "queimar pontos" de um dos seus atributos para facilitar uma ação, literalmente o personagem se esforça para superar uma dificuldade encontrada. Esse esforço pode ser físico ou mental e sempre se caracteriza pela redução de 3 pontos de seu pool (Might, Speed ou Intelect). Personagens em início de carreira podem usar Effort para reduzir um único nível de desafio (step no jargão do jogo), mas como tempo eles podem usar mais pontos para reduzir ainda mais o grau de dificuldade. No exemplo, um personagem que usa 3 pontos de seu Might reduz em um o Nível de Desafio para superar o obstáculo do muro. Cada personagem possui um Edge ("trunfo") que permite diminuir o custo de Effort e facilitar a vida do explorador. 

Ter uma Habilidade condizente com o que está sendo testado, também diminui em um o Nível de Desafio se o personagem tiver treinamento e em dois níveis se ele for um especialista naquela ação. Por exemplo, digamos que o personagem seja treinado em "Escalar", nesse caso sempre que for realizar uma escalada a dificuldade cai em um nível.

Finalmente um Asset engloba todos os recursos existentes que podem conceder um trunfo para o personagem naquele teste. No exemplo da escalada, ter uma corda pode ser considerado como um Asset, bem como conhecer o paredão ou estudar o melhor caminho.


Cada vez que o jogador conseguir empregar um fator para melhorar a sua performance, o Nível de Desafio irá diminuir em um grau e consequentemente o número que ele precisará obter no d20 será decrescido em 3 pontos. Ajustando suficientemente um nível de desafio permite que o personagem consiga realizar façanhas que normalmente seriam impossíveis.

Através desse princípio determina-se todos os testes do jogo. Parece complicado, mas na prática tudo se resolve muito rapidamente, sendo muito tranquilo pegar o jeito da coisa: estabelecer uma dificuldade, aplicar redutores e fazer o rolamento não leva mais do que alguns segundos.


Como foi mencionado, o jogador é quem faz todos os lançamentos de dado e determina o resultado, tanto para atacar, quanto para ser atacado. Uma grande sacada das regras é fazer com que ele tenha vários resultados críticos. Uma das coisas que sempre é comemorada na mesa são rolamentos decisivos, em Numenéra qualquer resultado natural entre 17 e 20 é considerado um crítico concedendo ao personagem um bônus. Longe de desbalancear o jogo, isso é um efeito que produz excitação e resposta da parte dos jogadores.

Mas você deve estar se perguntando, se o narrador não rola dados que tipo de controle ele exerce sobre a narrativa. Esse controle se dá através de uma prerrogativa chamada GM Intrusion. Basicamente o mestre tem a faculdade de atormentar os jogadores fazendo com que condições aleatórias se manifestem e tornem o jogo mais vibrante. Digamos que em meio ao combate ele acrescente um inimigo que aparece na última hora, que adicione um ataque especial, que faça com que uma arma quebre ou que um herói escorregue. Todas essas intrusões do narrador são acrescentadas para tornar as coisas mais interessantes. O narrador complica a vida dos jogadores, mas estes não saem de mão abanando. Cada vez que o narrador se intromete, o jogador diretamente afetado ganha 2 pontos de Experiência (XP), um para ele e outro para um de seus colegas. Basicamente, você pode se dar mal, mas ao menos ganha uma compensação. O único senão é que quando o jogador rola um "1" no D20, o narrador tem direito de fazer uma Intrusion e não precisa distribuir XP.

O uso de XP é mais funcional no jogo. É claro, ele pode ser usado no final da aventura para aumentar as capacidades do personagem, mas no decorrer da partida, XP é utilizado para re-rolar resultados desfavoráveis, para influir no desdobramento da narrativa ou para alterar algum fator na ficha do personagem. Em Numenéra não existem níveis de experiência, o equivalente seriam os Tiers (Graduações) que aumentam a medida que um devido conjunto de aprimoramentos são realizados. Num primeiro momento achei que 6 Tiers poderia ser pouco, mas o avanço entre um Tier e outro envolve algo em torno de 4-5 aventuras, isso com XP máximo a cada sequência, então no final das contas, atingir o sexto (e último) Tier demandaria um bom tempo.  

O sistema de combate também é bastante elegante e funcional. Basicamente as estatísticas de inimigos e oponentes se fixam em fornecer níveis de dificuldade que informam qual o Nível de Desafio exigido para desviar dos ataques ou para acertar o oponente. A ficha dos inimigos é incrivelmente simples com estatísticas básicas que tornam os combates incrivelmente ágeis. Essa rapidez permite ao narrador descrever as manobras e o que está acontecendo através de recursos narrativos, sem precisar de mapas, grids, miniaturas ou o que quer que seja. Para os fãs dos RPG old-school, em que a distribuição espacial dos combatentes ficava confinada na cabeça dos envolvidos, é uma bem vinda volta às origens.

O único porém (e estou sendo chato) do sistema de combate é o dano fixo das armas, coisa de que não sou muito fã (já que adoro rolar dados para determinar dano aleatório). Mas mesmo isso não chega a ser um problema, pois os rolamentos críticos ajudam a equacionar esse fator, alterando o montante infligido.

Numenéra obviamente possui mais algumas regras para customização e situações específicas, mas de um modo geral, a mecânica se concentra fundamentalmente no princípio de Nível de Desafio e seus ajustes. Entender com isso funciona permite que o jogador iniciante se situe e possa participar de uma partida em pé de igualdade com veteranos. Além de ser fácil assimilar a mecânica, o narrador também consegue se adaptar rapidamente e conduzir um jogo sem grandes questionamentos que o forcem a parar a aventura e consultar o livro em busca de uma nota de rodapé. Posso dizer sem medo de errar que esse sistema é uma excelente opção para iniciantes, sem entretanto se mostrar simplório para quem gosta de regras mais sólidas.

Ufa! Ficou imenso novamente!

Vou pedir a licença dos colegas e inserir mais uma parte nessa já imensa resenha que (juro!) conclui na próxima parte dedicada inteiramente ao livro em si e ao conteúdo dele. 

7 comentários:

  1. Mais uma vez fantástico!, você faz um tentação do diabo para compra-ló :)

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  2. Ótima resenha! Comprei o livro mas ainda não terminei de ler mas foi muito esclarecedor ler seus comentários.
    Ele não me parece tão inovador quanto foi para você (mestre não rolar os dados é coisa bastante comum nos jogos indies) mas realmente a ambientação é muito boa e parece haver grande coerência entre as regras e ela - mesmo eu gostando de sistemas complexos.

    até!

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  3. Dei uma procurada no blog e não achei a primeira parte. :-(

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  4. A primeira parte está no dia 28 de março, dá uma procurada aqui na barra lateral à direita que você encontra fácil.

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  5. me pareceu ter uma complicação desnecessária na parte de ter que fazer cálculos. Por que não determinar a dificuldade de 0 a 30 logo de cara em vez de ser 0 a 10 só que x3?

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  6. Pedro, pensei o mesmo. Logo depois percebi que é mais fácil para o narrador determinar uma dificuldade de zero a dez.

    Gilson

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