sábado, 16 de agosto de 2014

O Homem de Duas Faces - Diprosopia e o fantástico caso de Edward Mordake


Duas caras.

Todos já devem ter ouvido essa expressão. Não é a melhor das coisas ser rotulado dessa forma, já que o termo indica uma pessoa que guarda uma opinião pessoal, enquanto expressa exatamente o oposto. Para muitos é a maior das manifestações de falsidade. A expressão, geralmente, não se refere ao fato de alguém ter realmente duas caras. Geralmente...

Há casos muitíssimo raros, em que o termo "duas caras" se aplica de forma literal.

A medicina conhece essa condição como Diprosopia. A palavra greco-latina pode ser traduzida como "duas faces". Trata-se de um perturbador defeito genético de nascimento. O nome "duplicação craniofacial", também é popular entre médicos, e dá uma boa ideia do que as pessoas com essa condição sofrem. A condição não deve ser confundida com policefalia – quando pessoas ou animais nascem com duas ou mais cabeças. A diprosofia se refere especificamente a características faciais replicadas. Geralmente, a duplicação ocorre através de um único elemento, como uma orelha, olhos ou um nariz extra, mas em casos extremos, uma face inteira pode ser duplicada.

Dentre os casos conhecidos de Diprosopia o de Edward Mordake se sobressai.

Mordake supostamente nasceu em uma família tradicional e com boa situação financeira. Ele era o único herdeiro de um importante título dentro da nobreza britânica na segunda metade do século XIX. Isso lhe garantia todos os benefícios e obrigações inerentes. Ele também deveria receber uma propriedade e uma quantia considerável ao longo de toda sua vida. Para se ter uma ideia da importância de seu status, nos dias atuais, apenas membros da Família Real possuem um benefício semelhante ao de Mordake, uma qualidade chamada peerage que é transmitida de forma cerimonial para membros de famílias detentoras de um assento perpétuo  na Câmara dos Lordes

Isso era o mesmo que nascer tendo ganho na loteria, mas Mordake não teve tanta sorte. Ele nasceu com diprosopia. 

Na parte posterior do crânio, Edward tinha uma segunda face completamente formada. O rosto claramente humano, ainda que flácido e levemente desfigurado, brotava em meio aos seus cabelos e era impossível de ser disfarçado. As pessoas que contemplavam essa segunda face a classificavam como assustadora e ficavam atordoadas diante da visão bizarra. O próprio Edward classificava seu rosto supérfluo como "demoníaco". Relatos da época afirmavam que olhar essa face diretamente era extremamente desconfortável, as pessoas diziam que os olhos expressavam uma centelha de inteligência, acrescida de cólera e raiva. Eles costumavam seguir as pessoas lentamente. Outros relatos apontavam para uma espécie de sorriso que lentamente se formava nos lábios como se quisesse demonstrar um sarcasmo inerente. Era quase impossível observa-la por muito tempo.

Apesar de levar uma vida solitária e triste, sempre em confinamento, Edward cresceu como um jovem brilhante, com aptidão para calculo e música. Ele desfrutou de tutores que lhe educaram de maneira respeitável para se tornar um cavalheiro a altura de seu título. Sua esperança era que algum médico fosse capaz de solucionar sua condição, arrancando a face que lhe atormentava. Nenhum médico de respeito, contudo, ousava sugerir uma maneira de extrair o rosto, visto que o procedimento sem dúvida resultaria em morte.

O pouco que se sabe a respeito da vida de Mordake é fruto de especulação e exageros. Sabe-se que ele teria vivido em reclusão numa vasta propriedade, tendo a companhia exclusiva de criados regiamente pagos para preservar a discrição. Médicos de toda Europa o visitavam para tentar oferecer uma solução ao dilema que o afligia.

Apenas quando Edward morreu, detalhes sobre sua condição vieram à público de modo que não se pode afirmar com certeza até que ponto as narrativas sobre sua deformidade são verdadeiras. Empregados que cuidavam de Mordake disseram que a face era capaz de se manifestar rindo ruidosamente em alguns momentos. Imputavam a ela a capacidade de sussurrar e lamentar longamente, na maioria das vezes, enquanto Edward dormia. Criados chegavam a afirmar terem ouvido a "face demoníaca" roncar, rosnar e até repetir algumas palavras incongruentes. O mais enervante entretanto seriam os ruídos de choro que ela produzia à todo momento.

Muito do que se sabe a respeito da existência de Edward Mordake advém de um livro editado no ano de 1900 intitulado "Anomalias e Curiosidades da medicina" (Anomalies and curiosities of medicine), escrito por George M. Gould, um dos médicos que examinaram o herdeiro e que ficaram mais tempo em sua companhia. 

Gould escreveu:
“Uma das mais notáveis e melancólicas estórias de deformidade humana envolveu o caso do jovem Edward Mordake, herdeiro de um dos mais elevados títulos de nobreza da Inglaterra. Ele jamais clamou pelo título, que era seu por direito de nascimento. O jovem Mordake cometeu suicídio na tenra idade de 23 anos. Ele viveu uma existência em total isolamento, recusando visitas e tendo como companheiros apenas os criados e médicos. Ele era um jovem homem de índole agradável e inegável brilhantismo intelectual. Sua aparência era impecável, com uma graça e finesse distintas, sua face era altiva e poderia ser descrita como aprazível. Mas no lado oposto ao seu rosto, havia uma segunda face com traços grotescos. Esse rosto adicional ocupava apenas uma pequena porção do crânio posterior de Mordake. Ela era capaz de manifestar sinais óbvios de inteligência. Notavelmente, ela chorava, sobretudo quando Mordake estava feliz. Os olhos se moviam e piscavam, enquanto os lábios articulavam palavras desprovidas de propósito. Sua voz era rouca quase inaudível, dotada de uma aspereza enervante para todos que a ouviam. Mordake se referia a essa face como seu próprio "demônio" e que ela era responsável por condená-lo a uma existência infernal. Nenhuma imaginação é capaz de conceber essa imagem e como médico, eu lamentei não ser capaz de oferecer algum alento que pudesse remover essa deformidade, sem colocar o paciente em grave perigo. "Trata-se de algo diabólico, pois um diabo ele é. Meu desejo é que ela fosse removida, esmagada, apagada" repetia Mordake quando se referia a sua face, sempre de maneira obstinada. Apesar de ser cuidadosamente vigiado, o rapaz conseguiu convencer um de seus acompanhantes a lhe fornecer veneno, que uma vez ingerido provocou a sua morte. Ele deixou uma carta requisitando que a "face demoníaca" fosse removida cirurgicamente após seu falecimento para que ele pudesse ser enterrado sem esse fardo. O pedido foi satisfeito pelos doutores Manvers e Treadwell". 
Embora curta, a existência de Mordake teria sido tortuosa.

Entretanto, há questionamentos de que ele sequer tenha existido. A fotografia reputada a ele (que está no alto desse artigo) não pertence necessariamente a Edward Mordake. Uma vez que ninguém é capaz de creditar a autenticidade ou mesmo a fonte da foto, não há como dizer quem é essa pessoa. Também não há comprovação de que ela seja autêntica ou uma montagem. Dada a extrema reclusão em que vivia, parece improvável que Edward permitisse a tomada de uma fotografia. 

As biografias dos médicos que teriam cuidado de Mordake também são questionáveis. O Dr. George Gould era conhecido por apresentar e (dizem algumas fontes) explorar curiosidades médicas em benefício próprio. Ele teria sido um dos médicos que requisitaram uma entrevista com o famoso Joseph Merrick, que na Era Vitoriana ficou conhecido como Homem Elefante. O médico particular de Merrick proibiu o acesso de Gould por considerá-lo um tratante interessado apena em auto-promoção. Os demais médicos, Manvers e Treadwell citados no livro também são obscuros e podem jamais ter existido. Da mesma forma, não se sabe onde Mordake teria sido sepultado ou qual foi o destino de sua "face demoníaca" uma vez removia postumamente, conforme relatou Gould. Se tal procedimento cirúrgico foi realmente executado seria de se supor que a amostra fosse preservada, ainda que como curiosidade científica.

Se realmente existiu, Mordake aparentemente foi único por ter uma segunda face capaz de manifestar expressões e chorar. Indivíduos com Diprosopia não possuem qualquer reação em sua face adicional, ela é estática. Até onde os relatos são confiáveis, talvez jamais venhamos a saber, mas o que se sabe ao certo é que ele não foi o único a sofrer com esse terrível destino.   

Alguns relatos mencionam a existência de um homem, contemporâneo de Mordake, conhecido como "O Mexicano de Duas Cabeças". O nome verdadeiro desse sujeito era Pasqual Pinon, e ele supostamente nasceu com uma face se projetando no lado oposto ao seu rosto original. Na época, médicos que examinaram Pinon determinaram que ele era uma fraude. A estrutura que crescia no outro lado de sua cabeça era um enorme tumor categorizado como craniopagus paraciticus, que não se relaciona com a diprosopia. Ele foi descoberto por promotores de uma trupe de variedades americana, o Sells Floto Circus que viajava para vários lugares apresentando pessoas deformadas em shows, algo que fazia muito sucesso no século XIX. A segunda face de Pinon não passava da massa do tumor acrescida de elementos de cera para que parecesse um grotesco rosto artificial.

Quase todas as pobres almas que nasceram com Diprosopia morreram horas depois, isso quando elas não foram abortadas naturalmente. Uma menina chamada Lali Singh, nascida em Saini, nos arredores de Delhi, em 2008 sobreviveu por dois meses após um complicado parto. Ela tinha quatro olhos, dois narizes, duas bocas e oito orelhas. Na sua curta existência, ela chegou a ser venerada em seu vilarejo natal como a encarnação humana da Deusa Hindu Durga (que segundo a mitologia possui vários olhos).

Há também o caso de Faith e Hope Howie, nascidas na Austrália em maio de 2014. Elas tinham um único crânio, mas duas faces e dois cérebros independentes ainda que mal formados. Os médicos perceberam que nos 19 dias de vida, as duas tinham comportamento individual. Crianças com diprosopia possuem outras deformidades que impedem seu desenvolvimento e por isso sua sobrevivência é rara além de alguns poucos meses. Isso lança dúvidas sobre o caso de Mordake ou o torna único.

Historicamente pessoas ou animais nascidos com esse grau de deformidade eram vistas com uma mistura de piedade e mórbida curiosidade. Para alguns, sobretudo no passado, elas eram resultado de maldições ou da danação impingida por severos deuses. É possível, entretanto que os vastos avanços no mapeamento do genoma e nas pesquisas genéticas um dia possam oferecer uma solução para esses casos.

Nota - Eu fui propositalmente econômico nas imagens desse artigo. Acredito que não seja necessário se valer de imagens chocantes para salientar o que está descrito no texto. Compreendo que algumas pessoas podem se sentir incomodadas com esse tipo de imagem e confesso que eu mesmo não gosto de usar tais imagens. A exceção é a que está no topo do artigo e que supostamente pertence a Edward Mordake, mas que provavelmente não passa de uma montagem engenhosa.

2 comentários:

  1. A imagem do topo parece muito uma foto de um modelo de cera.

    ResponderExcluir
  2. é um modelo de cera. só existe uma suposta foto verdadeira de E.M.

    ResponderExcluir